1-Introitus: Requiem aeternum
Petrificados plátanos saudavam o
cortejo, miserere mei, seguia para a eterna noite, oh glórias vãs, poderes
etéreos, interrompidas esperanças. Estão Giotto, Guariento, Vitale, a Sacra Via
de suplicantes à porta dos Céus, impotentes corpos servidos em tarde pascal.
Chove nas almas, descansam os corpos, morri no dia em que se morre.
2-Kyrie
Confesso. Confesso, não vivi. Aqui
vou, deitado, eu que já não sou, nós que não seremos, a Matilde chora por mim,
preso neste corpo inerte, ah, um cipreste confortante, logo as almas sairão,
fraternos patrulharemos angústias. E Deus, existirá? Ficarei à sua direita? Faz
frio, arrefece. Voltem, não vão já, não me deixem, egoístas, de volta às vossas
mortes diárias. É apertada a urna, falta o ar. Cheira a flores, flores de
morte.
3- Diez irae
Inicia-se a viagem, Anúbis barqueiro
em silêncio maneja o remo, Matilde chora, bem vejo, porque levantarão o som, é
o Inferno pela certa. E Jesus? Não está, regressou dos mortos, qual filme de
Corman. São belos os quadros aqui, perfumados, olha, Brunelleschi, Fra
Angelico, Donatello, Masaccio. Renascimento, lhe chamam, todos mortos, porém.
Quando parará a barca?
4.Tuba mirum
Chegamos ao cais, miserere mei, misere mei, disformes
embuçados carregam-me o caixão, será bom sinal? Vejo Matilde ao longe,
acaricia-me em foto, porque não guiei devagar? É esquisita a morte, cheira a
flores e cera. Dois homens riem naquela margem, chegaram agora, novos,
discípulos do Câncer, guerreiro da Morte.
5.Rex tremendae
Mandam-me erguer do caixão, que
aguarde, à volta retábulos e dentro deles mortos, vivos, mortos-vivos, Van Eyck
retoca um morto, e madonnas, muitas, florentinas, papais. Há vida também,
caminhos para o Paraíso, olha a Vénus, Botticelli, Bellini, Verrochio. Os
corpos estão desnudados, a mim desnudam também, pecador corpo suplicando por um
lugar. Sim, são cicatrizes, muitas, cateterismos, acidentes de mota, não foi
por eles que cá estou.
Ei-lo, o Redentor, Altivo,
Castigador. Existe! Afinal existe! É como nos filmes, velho como o mundo. E
agora, ajoelho, choro, que faço? Tirem-me daqui, quero comer, quero os meus
amigos, já sei, daqui a pouco vou acordar e rirei a bom rir. Não vejo a Matilde
agora, está escuro, toda a luz recai sobre o Velho.
6.Recordare
Sim, é verdade. Matei rolas,
indefesas. Bati no Alcides, coitado. Pequei, pequei, pronto. Pecados mortais?
Todos. Bem, todos não, nunca tive inveja do Antunes, coitado, só do Porsche. E
a mulher do Brás, foi ela que quis...
7. Confutatis
Abre-se uma porta, estou nu e faz
frio. Pronto, pronto, como queiram. Os quadros mais belos passam agora, olha o
Bellini, Leonardo. O Leonardo, Deus meu, desculpa, Deus tu, é o paraíso por
certo, com Leonardo só pode ser o paraíso, espreito ao fundo, parece Sintra, há
castelos, e muitos anjos. Virarei anjo, sem sexo e com asas? Quando a Matilde
me vir...
8.Lacrimosa
Passa um filme. Sou eu, é a minha
vida. Olha, a avó Chica, tão frágil, o Zézito, coitado, morreu em África. Olha
a Matilde, chora. O Velho nada diz, estuda-me, bem vejo. Deixem-me voltar, não
sou daqui, as minhas lágrimas nada valem? Onde está a caridade? Afastem de mim
este frio, tapem-me, torturem-me, mas deixem-me.
9.Domine Jesu
Afinal há mais gente. Jesus, o
Nazareno. Como é magro, nos olhos o sofrimento do mundo. Olha-me, acaricia-me a
cara, segue pela esquerda, sumiu. O Velho hesita, começo a ficar conformado.
Sempre há os quadros, Rafael, mais Leonardos. Sublimes, imortais, perenes,
serenos, gloriosos. Mandam que avance. É agora. Toca Mozart, ah Wolfgang,
estarás cá também, salvo da abjecta vala onde te deitaram? Só pode. Volto a ver
a Matilde, está bela, a dor torna as pessoas belas.
10.Hostias
O Velho baixou novo quadro. A
avaliação está feita. Tenho medo, mas estou sereno. Oh, não pode, Michelangelo,
a Capela Sistina, o camarote da Vida, será para mim?
11.Sanctus
Adão, Noé, Abraão, filhos de Israel,
crianças do Darfur, os inocentes, estão cá todos. Vou entrar! Sanctus, Sanctus, acredito agora,
desnudado entro, tocam tubas, repicam carrilhões, Matilde, Matilde, é Sexta-feira
Santa, não chores, estava escrito. Olá, sou o Alberto, cheguei hoje, estagiário
no Paraíso, aleluia! aleluia!
12.Benedictus
A imagem some no ar, entrei! Não eram
graves os pecados, choro e rio, oh catártico quadro onde afinal morto, revivo.
Oh triunfo de azul, azul de Céu, azul dos teus olhos, Matilde, azul do nosso
mar, salgado, só nosso. Estás longe, cada vez mais longe, mas posso escutar-te
a respiração, clara e próxima.
13.Agnus Dei
Apagam as luzes lá atrás, qual
passarola voo agora, criação de Michelangelo, em sistino paraíso sulco os Céus,
rodeado de anjos, seráficos e louros da cor do ouro, como os serafins do
antiquário em S. Pedro.
14.Communio: lux eterna
Adeus, Matilde. Ao morrer, vivo para
sempre. Fala de mim ao André, é lindo o nosso filho. E quando tiveres saudades,
abre o livro grande da sala. Lá estou, celestial sentinela e redimida alma,
criatura de Michelangelo.
Fecham a porta do cemitério. Adeus,
Matilde, até já…