Trovejava
na serra, e após um opíparo jantar em Sevilha, Salvador de Almeida e Miguel
Ruas partiam para Valência, a promessa de participar na Tomatina, tradicional
festa local, metera-os a caminho desde Portugal, depois de uma noite de copos
no Carbonnara. Médico em Lisboa, Salvador de Almeida viajava há dois
dias com o amigo, que acabara de lançar um livro sobre o avô, o conhecido
pensador Barrilaro Ruas. Nessa noite, já passada Córdoba e na subida para
Albacete, um carro preto de vidros fumados fez-lhes sinal para que encostassem
à berma, e, para sua surpresa, dois encapuzados saltando do interior
apontaram-lhes uma pistola, mandando-os sair e entrar no carro deles, ficando o
de Salvador abandonado na berma. Passava da meia-noite e em noite de trovoada, ninguém
presenciou a cena. Um deles, ordenando que não fizessem perguntas, colocou-lhes
uma venda para que não percebessem onde os levavam
Vinte
minutos depois, e sem que os encapuzados abrissem a boca, chegaram a um local
isolado, e foram levados para uma casa, tolhidos pelas cordas que os amarravam.
Já dentro, um dos mascarados tirou-lhes a venda, enquanto o outro arrancou no
carro. Estavam numa sala, ampla, de decoração clássica e com as janelas
corridas, num sofá de veludo jazia o corpo de um indivíduo de cabelos louros e
nariz pontiagudo. Sabendo pelo dístico do carro que Salvador era médico, o
encapuzado pretendia verificar se de facto o homem estava morto, tinha-os
seguido desde a área de serviço de El Braguillo. Contrariado, Salvador tomou o
pulso ao estranho, e confirmou: estava morto, efectivamente, o que deixou o
raptor nervoso. Numa mesa, um copo vazio com uma garrafa ao lado indiciava que
alguém teria bebido, um cheiro a arsénico não escapou a Miguel, conhecedor de
ervas e mezinhas, com que frequentemente se alimentava. Ouviu-se entretanto um
ruído indicando a chegada de alguém. Ao rodar da chave na fechadura o
encapuzado virou a arma na direcção da porta e o pânico apossou-se do
recém-chegado ao dar com tanta gente. Era um jovem, e logo revelou chamar-se
Fernando. Depois de coagido a sentar-se, atabalhoado tanto mostrava saber
informações sobre a casa e o homem falecido, como tudo negava logo de seguida.
Segundo
ele, o falecido era um tal Frederico Abreu, militar português de regresso de
uma comissão no Iraque, para o dr. Salvador, aparentemente morrera vítima de
uma dose de arsénico durante as férias em Espanha. Mas que tinha toda aquela
gente a ver com o assunto? Porque não os deixavam seguir em paz para a
Tomatina? Queriam lançar tomates, e em vez disso deparavam com um molho de
bróculos…
O
encapuzado foi ganhando familiaridade com Salvador, e sem lhe revelar a
identidade, explicou-lhe o seu interesse no caso. Era primo de uma publicitária
espanhola, Gemma, que se envolvera com o tal Frederico em Sintra, um ano antes,
após este ter cedido a casa para couchsurfing, e procurando-o a pedido
desta para lhe entregar umas fotos, dera com ele morto na sala. Como primo e
amigo, era uma espécie de pau-de-cabeleira, também estava em Sintra, quando
eles se conheceram. Uma amizade de infância predispusera-o a colaborar, e
ajudá-la a ocultar o caso, a prima era noiva, e aquela relação perigosa. Ao
encontrar Frederico morto só lhe ocorreu falar com o médico, não sendo assim,
talvez voluntariamente não viesse, a matrícula portuguesa apressou o rapto, no
íntimo, esperava que apenas estivesse drogado ou adormecido.
Em
Sintra, contou, havia um grupo que todas as noites se reunia num bar, o
Legendary, onde alguns amigos de Frederico, como Karima e Diogo acompanharam o flirt
de Verão com Gemma. Ele próprio se havia envolvido com Karima, que segundo
percebeu, tinha uma relação esquisita com Frederico, observando-os de soslaio,
na praia ou nos bares de Sintra.
Até
ali calado, Fernando decidiu-se a falar. Era amigo de Gemma, do Facebook, e
esta, num momento de desespero, confessara-lhe no chat ter sido ela quem matara
Frederico. Descobrira que ele tinha uma vida dupla, era secretamente casado com
Karima e fora ali para verificar se ela estava bem, nutria pela amiga uma paixão
não correspondida, a ideia de um segredo partilhado alentava-o e dava-lhe
esperanças, daí ter feito viagem até Espanha.
A
certa altura, o encapuzado achou que tinham de decidir o que fazer com o morto,
o tempo passava e começava a exalar um cheiro intenso. Tirando o capuz,
Fernando
reconheceu nele André Plácido, um boxeur primo de Gemma, tinham estado todos
juntos em Sintra, no ano anterior.
-Mas
tu és o André! –revelou, atónito. Não te lembras de mim, o amigo da
Gemma?
O
tal André reagiu como se tivesse tido um flash. Abrindo o jogo, Fernando
contou-lhe o que sucedera. Unia-os agora a missão de proteger a prima e amiga. Salvador
e Miguel, já envolvidos na história, ansiando por um shot, prometiam
silêncio, lá fora chovia e a tempestade não abrandava nos céus de Castilla La
Mancha
De
novo o deslizar de uma chave rodou sobre a porta, deixando a sala em silêncio.
Pálida e nervosa, era Gemma, pálida e olheirenta. Deparando com o corpo hirto
mas sereno de Frederico, ficou gélida, e rebentou num choro incontido. Apenas
quisera adormecê-lo o tempo suficiente para confirmar se era verdade o
casamento secreto com Karima, a francesa de ascendência argelina, exagerara na
dose, e ao vê-lo cair, fugira, assustada. A noite prometia, e Miguel Ruas
esperava sobreviver para contar tão incrível história ao seu colega Eça, um
estudante de Ciência Política que se estava a lançar como escritor.
Feito
um pacto de silêncio, enterraram Frederico no quintal e queimaram os vestígios
na lareira, começando por uma bola azul de que ele jamais se separava. Uma
história com fim amargo para sempre os uniria a todos. Amanhecia já, quando
partiram, a trovoada amainara e novo dia raiava, deixando para trás de si uma
noite dos diabos na planície espanhola, a poucos quilómetros de Albacete.
Três
meses depois, inconsolável, Gemma partia para o Sarah espanhol, voluntária duma
ONG de ajuda no combate à desertificação, André e Fernando ficaram amigos, e o
dr. Salvador voltou às consultas em Lisboa. Durante algum tempo ainda, os
jornais falaram do desaparecimento dum oficial português em Espanha,
aparentemente perto de Albacete. Miguel arranjou tema para mais um livro, mas à
cautela, não voltou a passar por aquela estrada.
Promessa
de comediante quando voltasse à vida civil, a Frederico Abreu foi pelos amigos
dado o nome a um teatro em Sintra, onde altas horas da noite pode às vezes ser
escutado em eloquentes tiradas de stand up.
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