Faria
Machado abeirou-se da janela e correu para o gabinete, arfando:
-Senhor
cônsul, a fila está a engrossar lá em baixo! Que quer que façamos? -
o assustado funcionário apesar de quatro anos em Bordéus nunca vira nada assim.
Aristides Sousa Mendes foi espreitar, mais de vinte pessoas faziam fila, à
espera de um visto para Portugal. Alguns rabinos, yeddish com peias pelos ombros e várias mães com filhos pela mão, apreensivas
e assustadas. Estava-se em Junho de 1940, oito dias antes o exército alemão
entrara em Paris e o Reich privara de nacionalidade os hebreus, ciganos e os nacionais
dos Estados ocupados, de repente apátridas e sem papéis. Notícias da Alemanha
faziam temer o pior e Portugal, neutral, surgiu como um súbito abrigo. Lisboa
primeiro, e depois se veria.
De
Lisboa, Sousa Mendes recebera instruções rigorosas pela circular 14: nada de
vistos sem consulta prévia a indivíduos de nacionalidade em litígio, apátridas,
portadores de passaportes Nansen, russos, ou judeus expulsos do país de origem.
Contudo, desde que correu a notícia de que o cônsul de Bordéus concedera visto
a Arnold Winitzer, um judeu austríaco em risco de ser internado num campo de
detenção francês, Portugal pareceu um destino seguro. Outros dois ou três casos,
objecto de reparo em Lisboa, se sucederam, Sousa Mendes pisava o risco, mas
ganhava fama.
Taciturno,
fechou-se no gabinete, pensando no que fazer com aquela gente, à mercê de um
carimbo e apanhada numa guerra iníqua. Eram famílias inteiras, respeitáveis e
honradas, e absurdamente perseguidas. No seu íntimo, tomou uma decisão:
-Faria Machado, chame o Braga
para aqui e mande-os entrar um por um, por ordem de chegada. Sente-se aqui a
meu lado e traga o selo branco! -resoluto, decidiu-se, não é
possível ser homem sem humanidade. Um sorriso de alívio atravessou a fila
desesperada mal as portas se abriram, todos querendo entrar primeiro. Sousa
Mendes fazia a triagem e assinava, enquanto obediente, mas apreensivo, Faria
Machado ia apondo o selo branco. Havia ainda que obter um livre-trânsito para
Espanha, geralmente fácil para passageiros em trânsito, o consulado de Bordéus
tornava-se a redentora fronteira entre a vida e a morte.
Norah
Kempinski, violinista na Orquestra de Viena, e a mãe, arrastando duas malas
cartonadas com bom aspecto, sinal de uma vida até ali estável e com conforto,
surgiram nesse dia, com ar assustado e suplicante. Chegada à secretária de
Aristides, olharam-se, silenciosos e cúmplices. Cortês, o cônsul leu os papéis
e rubricou os vistos, após o que Norah, em silêncio colocou a sua mão sobre a
dele. Pegou na mala e na mãe e desapareceu na esquina do Quai Louis XVIII, rumo
à gare de Bordéus, onde inúmeros portadores de passaportes Nansen e apátridas
aguardavam o Sud Express salvador e
cada minuto antes da partida parecia uma eternidade.
Nos
dias seguintes a fila foi engrossando, Portugal, esse país distante, era o
Eldorado onde todos queriam chegar. Lisboa soube do reboliço em Bordéus e o
embaixador em Madrid foi enviado a Hendaia, para travar o ímpeto de Aristides.
Quatro mil assinaturas haviam já livrado inúmeros inocentes, culpados apenas de
estarem vivos no sítio e hora errados, e que ao som redentor dum selo branco
marchavam em direcção à liberdade. Lisboa fechou os olhos à entrada dos
refugiados, a imagem de país acolhedor até nem desagradou a Salazar, mas a
autoridade do Estado não podia
fraquejar, e o peso da disciplina caiu sobre o homem de Bordéus. Em
Outubro, depois de suspenso, Aristides foi punido com um ano de inactividade e corte
em metade do vencimento, e mais tarde secamente aposentado e sem meios para
sobreviver, sem visto para a dignidade e com o selo branco numa guia com o
castigo.
Norah
e a mãe chegaram a Lisboa em finais de Junho. Joaquim Morais, comerciante da
Baixa, conheceu-as no Governo Civil, repleto de refugiados, sós e assustadas.
Uma filha com a idade de Norah, levou-o a deter o olhar naquela moça frágil e
perdida, e inteirado da situação, ofereceu-se para as alojar, uma vida de
dificuldades dera-lhe a percepção de quanto as pessoas contam nos maus
momentos. Por cá ficaram seis meses, e na casa de Sintra dos Morais e com a sua
família numerosa passaram o resto de 1940. Não fosse o racionamento do açúcar,
nada deixava transparecer estar o mundo em conflito. Os filmes de Leitão de
Barros e a épica Exposição do Mundo Português exaltavam um país tranquilo que
sabiamente o doutor Salazar poupava a uma guerra distante. Foram meses a
cicatrizar com aquela nova e providencial família, até que pelo Natal uma
agência judaica lhes conseguiu o visto para a América. Passada a Estátua da
Liberdade, chegava finalmente uma esperança de futuro, do lado de lá do
Atlântico.
A
guerra acabou e os anos passaram. Caído em desgraça, Sousa Mendes morreu na miséria,
Norah fez carreira na América e nos anos seguintes voltou várias vezes
para rever a família portuguesa. Fugira à Shoah e a um destino tenebroso, e em
cada concerto o violino vibrava e as cordas furiosas choravam pela
sordidez dos injustos. Mas também pelos bons e gentios muitas vezes gritou o
arrebatado violino.
Em
1975, avó e já retirada, pela primeira vez visitou Israel, essa Terra
Prometida onde ainda pensou viver depois da guerra, desafiada por amigos do Irgun. Antes, passou
duas semanas em Sintra, com Amália, a filha de Joaquim Morais e os filhos
desta. O “pai” Joaquim falecera já, mas deixara um anel de estimação para a
frágil Norah que um dia encontrou perdida no Governo Civil. Foi a sua última
visita.
Em
Jerusalém e num turbilhão de emoções, procurou no Yad Vashem pelo Jardim dos
Gentios. Ruas de alfarrobeiras alinhadas, flores frescas e sempre renovadas, em
cada árvore, uma placa identificava os nomes dos que generosamente haviam
resgatado do holocausto inúmeras vidas num tempo
de intolerância.Com os olhos, correu as placas: Wahlenberg, Schindler, frente a
uma alfarrobeira aquecida pelo sol, finalmente vislumbrou o nome procurado,
detendo-se, com um arrepio na espinha. Era ali. Com lágrimas no rosto, depositou
uma rosa sobre a lápide branca e simples. Aristides Sousa Mendes, o
cônsul de Bordéus, que com uma assinatura a salvara dum destino cruel, para a
eternidade ali estava recordado.
A
humanidade não é um estado a que se ascenda. É uma dignidade que se conquista.