O
abrasivo sol de Agosto desaconselhava caminhadas, mas D. Henrique não dispensava
o seu passeio pelo areal. As naus de Gonçalo de Sintra regressavam de Arguim,
carregadas de goma laca e de escravos, divertia-o o alarido
ruidoso dos homens em terra e das mulheres carpindo no cais. Desde que as velas
de Cristo haviam sulcado o Bojador que os negócios prosperavam, e de
terras do Mali chegavam cativos, vendidos por régulos de Tumbuctu.
Nuno Tristão e Antão Gonçalves porfiavam na empresa mercantil, e enquanto
caminhava no cais, pensava como ajuizado fora navegar para lá do Cabo Branco, agora alargado
a Arguim.
Contava
já cinquenta anos e não casara, só os negócios e os mareantes o
distraíam, longe da corte e do rei, o jovem sobrinho rodeado de
intriguistas. Aquele sul bafejado pelo suão, o cheiro a peixe e goma,
no mercado de Lagos, eram um bálsamo para o seu espírito atormentado.
Arguim,
ilha de água doce brotando da areia, como entusiasmado a descrevera
Gonçalo ao voltar, cheia de bancos de areia e recifes, era a mais recente
descoberta, acrescentando domínios à Ordem de Cristo, em Veneza Fra Mauro
trabalhava em novas cartas, que de futuro facilitariam a orientação
das naus mais para sul.
Lagos
fervilhava de navios e mercadores, marranos de Lisboa e Évora e flamengos de
Bruges. Pela tarde fariam o trato da goma e dos escravos, boas parideiras, as
fêmeas logo reproduziriam. D. Henrique, chegando a cavalo, inspecionou a
mercadoria, um negro alto e musculado atraiu-lhe a atenção. Sempre
interessado nos machos, possuía vários espécimes, que, dizia-se, frequentemente
eram vistos nos seus aposentos durante a noite, após o que por vezes se ouviam
ruídos de chicote, com que o infante expulsava o pecado, aventava Domingas, a
cozinheira, benzendo-se. Gonçalo de Sintra acompanhava-o na inspeção,
enquanto Telmo da Gama, o feitor separava seis escravos para o Duque de
Beja, a goma laca seguiria para Lisboa.
Gonçalo
era seu protegido, íntimo da casa de Lagos e seu frequente acompanhante
nas deslocações à Côrte, antes de D. Duarte se finar levara-o mesmo
a conhecer Sintra, onde nascera. D. Henrique apontou-lhe o negro alto, pedindo
opinião. Era escuro como um tição, hirto e agrilhoado, olhava para os
captores com desprezo. Das carnes desnudadas sobressaíam as vergonhas,
pujantes, bom reprodutor por certo, ruminou o Infante. Gonçalo apreciou-lhe
a desenvoltura, e D. Henrique mandou separá-lo dos outros, mais duas
pretas já prenhas, as crias renderiam bom dinheiro, logo Adahu
os carregando numa carroça, a caminho da casa do infante.
Adahu,
velho tuaregue ao serviço de D. Henrique, era um escravo capturado em
Tumbuctu. Chegara-se a pensar ter informações sobre o Prestes João, mas era
falso, ainda assim, D.Henrique, depois de o mandar açoitar como mentiroso,
manteve-o ao seu serviço. Como mais velho, tinha ascendência sobre os
recém-chegados, o seu chicote de boas vindas não deixaria de festejar a
aquisição de novos braços, os mais fortes destinados à construção das naus, os outros
para o serviço doméstico, sendo os mais formosos para os aposentos particulares
do seu amo.
Já
caída a noite, depois da ruidosa arenga da venda no mercado dos
escravos, regressou o infante à casa chã onde Domingas, instruída para não
incomodar, deixara sobre uma mesa uma malga de leite e meio pão de centeio.
Depois das orações, com o horizonte azul recortado pelas velas de Cristo,
e após um pôr-do-sol tardio, prenunciando mais um dia cálido, o Navegador
recolheu ao quarto, onde o tição negro o aguardava, para satisfazer as
vontades do seu senhor.
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