domingo, 18 de janeiro de 2015

O mercador de Lagos





O abrasivo sol de Agosto desaconselhava caminhadas, mas D. Henrique não dispensava o seu passeio pelo areal. As naus de Gonçalo de Sintra regressavam de Arguim,  carregadas  de goma laca e de escravos, divertia-o o alarido ruidoso dos homens em terra e das mulheres carpindo no cais. Desde que as velas de Cristo haviam sulcado o Bojador que os negócios  prosperavam, e de terras do Mali chegavam cativos, vendidos por régulos  de Tumbuctu. Nuno Tristão e Antão Gonçalves porfiavam na empresa mercantil, e enquanto caminhava no cais, pensava como ajuizado fora navegar para lá do Cabo Branco, agora alargado  a Arguim.

Contava já cinquenta anos e não casara, só os negócios e os  mareantes o distraíam, longe da corte e do rei, o jovem sobrinho rodeado de intriguistas. Aquele sul bafejado pelo suão, o cheiro a peixe e goma,  no mercado de Lagos, eram um bálsamo para o seu espírito atormentado.

Arguim, ilha de  água doce brotando da areia, como entusiasmado a descrevera Gonçalo ao voltar, cheia de bancos de areia e recifes, era a mais recente descoberta, acrescentando domínios à Ordem de Cristo, em Veneza Fra Mauro  trabalhava  em novas cartas, que de futuro facilitariam a orientação das naus mais para sul.

Lagos fervilhava de navios e mercadores, marranos de Lisboa e Évora e flamengos de Bruges. Pela tarde fariam o trato da goma e dos escravos, boas parideiras, as fêmeas logo reproduziriam. D. Henrique, chegando a cavalo, inspecionou a mercadoria, um negro alto e musculado  atraiu-lhe a atenção. Sempre interessado nos  machos, possuía vários espécimes, que, dizia-se, frequentemente eram vistos nos seus aposentos durante a noite, após o que por vezes se ouviam ruídos de chicote, com que o infante expulsava o pecado, aventava Domingas, a cozinheira, benzendo-se. Gonçalo de Sintra acompanhava-o na inspeção, enquanto Telmo da Gama, o feitor separava seis escravos para o Duque de Beja, a goma laca seguiria para Lisboa.

Gonçalo era seu protegido, íntimo da casa de Lagos e seu frequente acompanhante nas deslocações à Côrte, antes de D. Duarte se finar  levara-o mesmo a conhecer Sintra, onde nascera. D. Henrique apontou-lhe o negro alto, pedindo opinião. Era escuro como um tição, hirto e agrilhoado, olhava para os captores com desprezo. Das carnes desnudadas sobressaíam as vergonhas, pujantes, bom reprodutor por certo, ruminou o Infante. Gonçalo apreciou-lhe a desenvoltura, e D. Henrique  mandou separá-lo dos outros, mais duas pretas já prenhas, as crias renderiam bom dinheiro, logo Adahu os carregando numa carroça, a caminho da casa do infante.

Adahu, velho tuaregue ao serviço de D. Henrique, era um escravo capturado em Tumbuctu. Chegara-se a pensar ter informações sobre o Prestes João, mas era falso, ainda assim, D.Henrique, depois de o mandar açoitar como mentiroso, manteve-o ao seu serviço. Como mais velho, tinha ascendência sobre os recém-chegados, o seu chicote de boas vindas não deixaria de festejar a aquisição de novos braços, os mais fortes destinados à construção das naus, os outros para o serviço doméstico, sendo os mais formosos para os aposentos particulares do seu amo.

Já caída a noite, depois da ruidosa arenga da venda no mercado dos escravos, regressou o infante à casa chã onde Domingas, instruída para não incomodar, deixara sobre uma mesa uma malga de leite e meio pão de centeio. Depois das orações, com  o horizonte azul recortado pelas velas de Cristo, e após um pôr-do-sol tardio, prenunciando mais um dia cálido, o Navegador recolheu ao quarto, onde o tição negro  o aguardava, para satisfazer as vontades do seu senhor.

Sem comentários:

Enviar um comentário