quinta-feira, 30 de abril de 2015

As duas mortes de Adolfo Hitler



Berlim, 30 de Abril de 1945. Os soviéticos chegavam à Alexanderplatz quando uma chuva de granadas caiu sobre o bunker. Pela uma da tarde, sentindo o tempo esgotar-se, Hitler desposou Eva Braun, tendo por testemunhas Goebbels e Bormann. A lúgubre cerimónia terminou com um brinde aos esposos, que minutos depois se retiraram para uma sala onde Gertrude anotou o testamento do Führer.Doze anos de paranóia chegavam ao fim.No seu testamento, Hitler ditou: “não quero cair em mãos do inimigo, que quer oferecer um espectáculo com o único objectivo de divertir as massas histéricas. Consequentemente, decidi ficar em Berlim e escolher voluntariamente a morte, no momento em que considere que a posição do Führer e da Chancelaria não possam ser mantidas por muito tempo. Morro com a alegria no coração, consciente das imensas realizações do nosso povo e da contribuição incomparável que a juventude que tem o meu nome deu à História”. Cumprimentou os assistentes, um por um, e seguidamente almoçou com as secretárias e o cozinheiro. Depois, despediu-se e acompanhado por Eva, dirigiu-se para o quarto. Uma vez fechada a porta, Otto Gunche levou-os por um corredor secreto com acesso ao hospital próximo, e daí os levou numa ambulância para fora de Berlim, disfarçados de médicos. Eram três e quarenta e cinco quando no bunker se escutou um disparo, proveniente do quarto onde o casal entrara minutos antes, posto o que Bormann entrou nos aposentos, acompanhado pelo criado, Linge. Um corpo jazia inerte numa cadeira, outro, de mulher, esvaía-se em sangue, no divã. A seu lado, duas pistolas, uma Walter PPK, e outra menor, que Hitler trazia sempre, do corpo da mulher exalava já um cheiro intenso a cianeto. Bormann voltou à sala onde se encontravam Goebbels, Burgdorf e outros e anunciou, solene:"O Führer está morto." De seguida, os cadáveres foram tapados e levados para fora do abrigo, onde depois de os regarem com gasolina foram cremados. Toda uma época acabava de se esfumar, deixando a Alemanha nas mãos dos ocupantes.
Portugal, 7 de Maio de 1945. Enquanto Berlim fumegava destruída, com os russos controlando a cidade, depois da rendição alemã, no extremo ocidental da Europa e alheio a tudo, Joaquim Gregório, na Praia da Adraga, apanhava mexilhões para uma patuscada na tasca do Paletas, ainda sete horas não eram. No mar, dolente, uma traineira dirigia-se para a Ericeira,rodeada de gaivotas. Um vulto negro e compacto pareceu-lhe porém emergir vindo do mar, a idade já lhe entorpecia a vista, pelo que parecendo-lhe ser ilusão de óptica se foi a emborcar um tinto para aquecer. Junto à traineira, e longe dos olhares, emergia um U-BOOT XXI alemão. Depois de aberta a escotilha, e de uns vultos baixarem uma escada da embarcação, um homem e uma mulher saíram do submarino, entrando no barco de pesca. Ele, aparentava cinquenta anos, magro, ela, seria algo mais nova, e assustada seguiu-o, obediente. Pelo comportamento dos do barco, seria alguém importante. De manhã, a PIDE encarregara dois inspectores de secretamente receber a bordo importantes dignitários alemães, nada mais adiantando, a neutralidade oficial não podia arriscar envolvimentos com o Eixo. Dali a traineira rumou a Cascais, não sem que o comandante do submarino fizesse ao homem a saudação nazi gritando, marcial, “Até sempre, mein Führer!”.As suas instruções eram as de, após deixar o casal na costa portuguesa, acordada com o governo local, desembarcarem num salva vidas perto de Leixões e afundar o submergível, desmobilizando depois, e partindo a novo destino, fora da Alemanha.
Com discrição, o casal foi alojado na Azóia, numa casa guardada pela polícia portuguesa, embarcando em Agosto seguinte, sob falsa identidade holandesa e passaporte fornecido por Lisboa, com destino a Buenos Aires. Na Azóia, constava serem refugiados judeus em trânsito para a América, mas nunca ninguém os viu, jamais saindo à rua enquanto lá permaneceram.
Rio Gallegos, Argentina, Setembro de 1964. Com consternação geral, gaúchos a cavalo escoltavam o funeral de Marcus Schoof, fazendeiro de origem holandesa há vinte anos na Patagónia e grande proprietário local, dono de uma fazenda com um milhão de hectares e da melhor carne da Argentina. Muitos alemães radicados na província compareciam ao enterro. A viúva, a senhora Eva, seguia atrás, numa charrette, à passagem do féretro os amigos de Schoof esticaram o braço, saudando em sinal de respeito. Pablo, o feitor da fazenda, lamentava a morte do patrão, vítima de sífilis, dizia-se à boca pequena, comentando a estranha colecção de dentes de ouro que guardava num cofre, de onde se dizia vir o dinheiro com que adquirira a fazenda, ao chegar de Portugal, anos antes. Junto a Eva, Leni Riefensthal, amiga dos tempos da Europa, confidenciou inconsolável a Pablo que quando era novo o siñor Schoof fora um grande defensor das causas sociais e muito amigo dos pobres.

sábado, 25 de abril de 2015

A recruta de Artur Baleizão



Reprovado em Direito e com o segundo ano em atraso, em Março de 1974 Artur Baleizão foi incorporado em Santarém, Cavalaria, o ramo onde uma besta montava outra, como dizia o avô, veterano da I Guerra. A viagem desde Castelo de Vide até nem era longa, mas a perspetiva de partir para África não o deixava tranquilo. O pai já falara com o capitão Maia, um conterrâneo, mas as coisas andavam acesas na Guiné desde que o general Spínola saíra e editara um livro que deixara muita gente nervosa. Na véspera da incorporação tinham havido incidentes nas Caldas, nunca percebera porquê, mas para ele, jovem miliciano, que nem os atacadores ainda aprendera a atar, estava como papagaio numa capoeira, suportando estoico a solha frita e o Fernandes a ressonar e a fazer camas à espanhola.

Nessa quarta-feira o recolher foi às nove, antes, telefonou a Mariana para que o esperasse  em Lisboa no fim-de-semana, para um copo no Jamaica. Na quinta de manhã haveria instrução de sapadores e ainda lhe doíam as pernas do cross da véspera, era uma vida estúpida para quem não queria fazer carreira, pensava, incómodo naquela farda feijão verde. Não conseguiu dormir logo, com o barulho na messe dos oficiais, o Passos, amigo e do pelotão, estava de serviço, esperaria por ele para um bate papo, só a luz de presença estava ligada na caserna. Aí pelas onze e meia, ouviu o segundo-comandante, furibundo, a atravessar a parada aos gritos, Cavalaria não era mole e Santarém ainda menos. Parte dos milicianos seguiria para o contingente NATO, em Tancos ou Santa Margarida, outros ainda para África, onde Nambuangongo parecera  coisa séria.

Já perto da uma, e sem que o Passos chegasse, uma algazarra soou na parada, e o tenente Barbeitos, apareceu aos gritos à  porta da caserna e a mandar formar em dez minutos. Mais uma praxe, pensou, enfadado. Todos formados, foram então informados que sairiam para uma missão, em Lisboa. Ordem de equipar o M-64 e G-3 municiada, duas rações de combate por homem, até parecia ter rebentado a guerra, pensou, lembrando a guerra do Solnado, aquele folclore sempre lhe parecera obsoleto e teatral, mas havia que ser resiliente, antes Lisboa que Bissau.No meio do reboliço, descortinou o capitão Maia, o seu patrício, de camuflado e falando com uns graduados. Ordenando sentido, dirigiu-se aos homens na formatura:

-Homens! Se bem que ainda não tenham concluído a vossa recruta, a vossa destreza vai ser hoje testada! Há uma missão a cumprir: marchar para Lisboa, e controlar o acesso ao Banco de Portugal, à Rádio Marconi e ao Terreiro do Paço. Esta missão visa devolver a dignidade ao povo português e demitir o governo, que tarda em arranjar soluções para os problemas do nosso país! Quem estiver contra, que dê um passo atrás!

O que parecia uma praxe, era afinal coisa séria, que fazer? Por um lado, a política pastosa que o atirara para a tropa causava-lhe repulsa, mas e se falhassem, mal tinham feito instrução de tiro, o Forte de Elvas poderia ser o destino da aventura noturna. Ninguém deu passos atrás. Um oficial correu entretanto a falar ao capitão Maia:

-Está tudo em marcha. A senha foi confirmada via Romeo, tudo Oscar Kilo, meu capitão!

-Ótimo! -saltando para um Chaimite, mandou avançar para a porta de armas, pouco passava das três da manhã, nessa noite não haveriam camas à espanhola.

Um esquadrão de reconhecimento com dez viaturas blindadas e outro com cento e sessenta homens, doze viaturas, duas ambulâncias e um jipe saía amotinado para Lisboa, tudo era confuso mas excitante, com sorte talvez ainda essa noite fossem ao Cacau da Ribeira.

A entrada em Lisboa ocorreu pelas cinco e meia. No Campo Grande, um polícia olhou para a coluna, mas não interferiu, manobras militares, com certeza, não dera conta de nenhum alerta. O Passos e o esquadrão dele foram para o Banco de Portugal, Artur e o grupo do capitão Maia tomaram posições no Terreiro do Paço, já as carrinhas com legumes se dirigiam para o mercado da Ribeira. Salgueiro Maia, sem encontrar oposição, contactou um tal Posto de Comando, dando conta da situação:

-"Informo que ocupámos Toledo (T.Paço), Bruxelas (Banco de Portugal) e Viena (Rádio Marconi). Diga se escuta!

-Afirmativo! -respondeu uma voz metalizada do outro lado. -Papa Charlie no controlo!

As coisas pareciam correr bem, até o comandante distrital da PSP apareceu a oferecer colaboração, descongestionando o trânsito, com o amanhecer o 28 para a Graça cruzara já a praça. Artur aproveitou para se dirigir ao capitão Maia:

-Meu capitão, vamos dar cabo do Marcelo, não vamos?

-Podes escrever, Artur, temos de pensar nos nossos filhos, e em Portugal! Esta é a nossa hora! -respondeu, pondo-lhe a mão no ombro. Apesar de sereno, tinha um ar cansado, aparentemente nenhuma coluna mais viria juntar-se-lhes, eram doze blindados com recrutas  contra o poderoso Império português.

Chegando os funcionários aos ministérios, enfim alguns oficiais afetos ao governo apareceram a enfrentar os amotinados, chegando o ambiente a aquecer com as provocações de  Ferrand de Almeida, a recusa dos seus homens em atacar levou os Panhard a passar para o lado dos homens de Santarém. Artur regozijava, a farda verde  da chacota tornava-se aos poucos de verde-esperança.

À medida que as notícias se foram espalhando, as pessoas invadiram as ruas, com um frémito na espinha, Artur viu Mariana a acenar na R. do Arsenal. Um beijo, soprado de longe, foi a certeza do sucesso.

Alucinantes, os acontecimentos sucederam-se: pessoas saindo à rua, saudando e oferecendo cigarros, a deslocação apoteótica para o  Largo do Carmo, o abraço emocionado ao Passos e aos camaradas do esquadrão. Uma florista do Rossio ofereceu-lhe um cravo, logo guardado para Mariana.

Passaram muitos anos, o orgasmo coletivo daquela extraordinária quinta-feira em que não houve instrução de sapadores, mudou o país de forma definitiva. Ainda hoje, advogado em Castelo de Vide, não passa um dia sem que Artur deixe uma flor na soleira da casa onde nasceu o capitão Maia, vertendo uma melancólica lágrima ao lembrar aquela madrugada chuvosa em que um punhado de recrutas saltou à pressa do beliche para um encontro marcado com a História.

domingo, 19 de abril de 2015

O destino infausto de Salomão Ben Crespe



Cinquenta e cinco anos, esguio e parco de carnes, diariamente o rabino Salomão Bem Crespe fazia o trajecto entre a sinagoga de Sintra e a sua casa na rua da Pendôa, onde igualmente exercia o ofício de alfaiate. A sinagoga fora permitida por aforamento, em 1407, e apesar de tentativas para alargar a judiaria, D. Afonso V ordenara que apenas a porta pudesse ser usada como local de comércio, estando vedado aos hebreus vender ou comprar para lá dela, onde, intolerantes, os cristãos velhos denunciavam com frequência as crianças marranas por brincarem na igreja de S. Pedro de Canaferrim, para eles, em desrespeito por solo sagrado.

Em Espanha haviam expulsado os irmãos, valeu na altura o rei D. João, que mandou montar acampamentos junto à raia para receber os sefarditas fugidos. No entanto, apenas lhes foi permitido ficar oito meses, e pagando taxas a El-Rei. Nesse tempo, as famílias judaicas em Sintra eram algumas já: sapateiros, alfaiates e ferreiros, Jacob de Baiona e Abraão Ruivo haviam sido cidadãos estimados e Salomão Palaegno um dos principais mercadores. Salomão ia amenizando a vida com a leitura dos Livros Sagrados na sinagoga, que tinha uma menorah como único adorno, a foragidos de Espanha havia já alojado, acossados pela maldição do sangue, dito impuro, e a infelicidade de serem felizes nos negócios.

Corria Dezembro de 1496, foi a vila acordada pela proclamação de um édito real. El-Rei D. Manuel decretava a conversão forçada dos filhos de Israel, buscassem os marranos a purificação pelo baptismo e com eles seria magnânimo. Salomão reuniu as famílias assustadas no terreiro, onde a plebe pedia sangue, pela usura haviam porfiado, pois que pagassem, semíticos herdeiros de Caifás, que matara Nosso Senhor Jesus Cristo. Na igreja de S. Martinho, frei Gonçalo do Rosário acicatava a conversão em incendiadas homilias, marranos para bem longe ou para junto dos gafos de S. Pedro, exigia, em tom exaltado.

A vila passava nesse tempo por uma seca prolongada, o que nas igrejas era justificado com a má influência dos judeus, o Senhor castigava o convívio com os pecadores, e por tal pecado se mostrava encolerizado com os de Sintra, mandando-lhes a peste em sinal de ira divina, e assim, nas semanas seguintes, oficiais do Paço correram ruas e casas, curando de apurar quem era temente a Deus e ao Santo Padre.Preocupado, Salomão juntou o povo na sinagoga. Velhos recitando salmos, crianças agarradas às mães, com fé entoaram cânticos que os filhos de Moisés e Salomão repetiam desde que a terra do leite e do mel fora alcançada, terra prometida bem longe desta, funesta e madrasta. Com o tempo, alguns converteram-se, era o fogo ou a vida, e Frei Gonçalo somava baptismos, no momento da água cair, fechavam os olhos e rezavam pelo povo de Israel. Muitas famílias tentaram fugir, mas o rei, alertado, mandou fechar os portos. A Rute de Córdova arrancaram os filhos, para serem educados como cristãos, os que restaram passaram a ser espectros silenciosos, arrastando como que lepra disfarçada.

Amargurado, Salomão abandonou Sintra e retirou-se para Lisboa, onde nos anos seguintes exerceu o ofício de alfaiate perto do Hospital de Todos os Santos.

Dez anos passaram, e 1506 chegou flagelado pela peste. Um dia de Abril, celebravam os cristãos velhos a Semana Santa, no tempo do Pesach hebraico, as igrejas encheram-se pedindo pelo fim da praga e redenção das almas, enquanto inflamados frades vendiam indulgências. Na igreja de S. Domingos, onde os dominicanos peroravam homilias sobre os males do reino, alguém durante a missa julgou ver sinais divinos num crucifixo, em comoção anunciando um milagre e todos chamando a rezar com fervor. Um cristão-novo, porém, arrefeceu os ânimos, mais não seria que uma candeia acesa ao lado do crucifixo.Reconhecido como marrano, logo a plebe enfurecida e crente no milagre se lançou sobre o herege, matando-o, acossada pelos dominicanos, e perseguindo a eito todos os infiéis à lei de Deus.

Metido com os seus pensamentos, Salomão Ben Crespe passava a essa hora pelo Rossio, a caminho de casa. Vergado pela idade e desgostos da vida, e passando à porta da igreja de S. Domingos, alertado pelo ruído, viu vir em direcção a si um grupo de exacerbados populares acicatados e gritando Mata! Mata! Ainda olhou em volta, pensando ser outro o alvo de tal raiva, quando, agarrado pelos cabelos foi arrastado pela terra, pejada de excrementos, golpeado e pontapeado, como se a cada pontapé uma chaga de Cristo fosse curada, e o reino dos Céus garantido. Possesso, um grupo espancava crianças arrancadas às mães, logo atiradas para uma pilha de lenha que ali se armou, por entre uma guincharia própria de matança em açougue.

Salomão fechou os olhos, olhou para o céu, e sorriu, sereno, deixando que o calor libertador do madeiro lhe queimasse a carne e consumisse o corpo. Preservada para a eternidade, a sua alma descansaria enfim, o Deus de Israel não o abandonaria. Até 21 de Abril duraria a sanha, sanguinária e atroz. Nesses dias de 1506, na era do senhor D. Manuel, venturoso rei de Portugal, o fumo da perfídia e o esturricado cheiro de justiça enegreciam a capital dum Império onde o Sol nunca se punha, mas as trevas não largavam.

quinta-feira, 9 de abril de 2015

A guerra do soldado Avelino




Avelino nunca saíra de Fontanelas, feliz entre as vacas e hortaliças que diariamente levava à Malveira, a chamada à tropa, ainda mal fizera dezoito anos, deixou os velhos pais em cuidado, aflita, a Anacleta até acendeu uma vela pelo cachopo. Em 1916, Portugal entrara na Grande Guerra, e depois de uma recruta apressada, Avelino era integrado no Corpo de Artilharia Pesada Independente, composto por três grupos mistos de baterias de artilharia pesada.

Em Janeiro de 1917 embarcou para França, chegando a Brest em Fevereiro, e em finais de Abril às trincheiras. Não entendia aquela guerra, apenas que detestava a ração inglesa e o frio, contrastante com a brisa de Fontanelas. O tempo foi passando, escutando o matraquear da artilharia e esculpindo varinhas de pau com uma navalha. Ao fim de um ano na frente, nunca tinha gozado licença, sendo analfabeto, jamais escrevera à família. Em casa, a mãe temia, os ataques com gás pimenta podiam ser fatais, agoirava Venâncio, o regedor.

Na frente viu tombar camaradas, ao Gervásio, da sua brigada, que lhe morreu nos braços, ficou com o relógio, para entregar ao filho, em Palmela, pediu-lhe à hora da morte. O general Tamagnini nada informava sobre o sucesso das operações, mas sentia-se que as coisas estavam mal.

Certo dia, o general Haking, mandou a Divisão de Avelino tomar novas posições. À sua brigada competia guarnecer três linhas de trincheiras e a linha de defesa baseada em baluartes ao longo de 40 quilómetros. A norte dos portugueses, estava a 40ªDivisão de Infantaria britânica, a sul, a 55ª.

Pelas quatro da manhã de 9 de Abril de 1918, estava a brigada de Avelino estacionada junto à ribeira de La Lys, entre Gravelle e Armentières, quando os alemães desencadearam uma barragem de artilharia com mais de duas horas de duração. Emboscados, os portugueses, comandados por Gomes da Costa, viram-se subitamente em combate, subordinados ao Corpo Britânico. Oito divisões do 6º Exército Alemão, comandados pelo general von Quast, lançavam a operação Georgette, visando tomar Calais e Boulogne-sur-Mer. Em apenas quatro horas, perdeu-se um terço dos efectivos, bem como 327 oficiais, os alemães queriam abrir um flanco, e o sector português o sítio escolhido.

Na trincheira e sob fogo cruzado, Avelino rangia os dentes, e fazia fogo com a Lewis, a Luísa, como chamava à metralhadora, parecia dia de círio, tal o foguetório, com as balas cruzando os ares de forma alucinante. A seu lado, o Ramires e mais três tombaram mortos, o Tomé, polidor em Loures, gritava, atingido por uma bala. Ao fim de uma hora, só Avelino restava vivo na trincheira, deambulando entre os mortos e recolhendo cunhetes de balas que foi tirando a camaradas. Só pela noite, extenuado e ferido, se conseguiu reunir ao 8º Batalhão, e chegar ao hospital de Saint Venant, onde, ardendo em febre, pôde enfim descansar. Tinha um lenho na perna, mas não inspirava cuidados. Ao passar pela sala de tratamentos, ouviu chamar o seu nome, em português:

-Avelino!

Espantado, viu um jovem franzino, deitado numa maca e com um braço esfacelado, esperando para ser operado, o ar sério do médico prenunciava uma amputação. Era o Sebastião Trina, de Lourel, companheiro de cavalhadas em Sintra, ignorava que também estivesse na Frente.

-Sebastião. Que te aconteceu, homem? – apesar de ferido, e a arrastar a perna, Avelino foi abraçá-lo, no ar angustiado do amigo, pinga-amor de Sintra, anteviu mais um estropiado, sorvido por uma guerra contra gente que nunca lhe fizera mal. O destino tecia a sua teia, e, nesse dia, marcou encontro nas margens do La Lys.

No terreno, a seriedade da situação levou o General Haking a chamar reservistas para ajudar a 3ª Brigada portuguesa a conter o inimigo. O 1º Batalhão do King Edward's Horse e o 11º de Ciclistas foram enviados para Lacouture, onde se uniram aos portugueses dos 13ºe 15º Batalhões, para defender a vila. Lacouture resistiu 26 horas, mas caiu a 10 de Abril, tendo os alemães capturado 168 portugueses e 77 britânicos. Nesse dia negro, os portugueses sofreram sete mil e quinhentas baixas, entre oficiais e soldados, 398 tombaram e mais de seis mil foram aprisionados. Em perda, os alemães ainda conseguiram abrir uma brecha de cinco quilómetros nas linhas aliadas, desmoralizadas, a 1ª e 2ª Brigadas da Infantaria portuguesa retiraram a 13 de Abril para nova linha de defesa, entre Lilliers e Stennberg. O comando britânico ainda enviou duas divisões para fechar as linhas aliadas, mas, para os portugueses, a batalha estava acabada.

No mês seguinte, Avelino e Sebastião foram evacuados para Portugal, sem um braço, o choro convulsivo da mãe recebeu Sebastião no regresso a casa. Para Avelino, uns arranhões apenas, e uma cicatriz a lembrar a guerra.

Mais tarde, já recuperado, foi a Palmela. Num mísero casebre, uma mulher e um rapaz descalço receberam-no, sem saber quem era o estranho que os visitava. Sem corda, parado no tempo, o relógio do Gervásio foi enfim entregue ao filho, orgulhoso do pai que por outros deu a vida que não viveu.