sábado, 25 de abril de 2015

A recruta de Artur Baleizão



Reprovado em Direito e com o segundo ano em atraso, em Março de 1974 Artur Baleizão foi incorporado em Santarém, Cavalaria, o ramo onde uma besta montava outra, como dizia o avô, veterano da I Guerra. A viagem desde Castelo de Vide até nem era longa, mas a perspetiva de partir para África não o deixava tranquilo. O pai já falara com o capitão Maia, um conterrâneo, mas as coisas andavam acesas na Guiné desde que o general Spínola saíra e editara um livro que deixara muita gente nervosa. Na véspera da incorporação tinham havido incidentes nas Caldas, nunca percebera porquê, mas para ele, jovem miliciano, que nem os atacadores ainda aprendera a atar, estava como papagaio numa capoeira, suportando estoico a solha frita e o Fernandes a ressonar e a fazer camas à espanhola.

Nessa quarta-feira o recolher foi às nove, antes, telefonou a Mariana para que o esperasse  em Lisboa no fim-de-semana, para um copo no Jamaica. Na quinta de manhã haveria instrução de sapadores e ainda lhe doíam as pernas do cross da véspera, era uma vida estúpida para quem não queria fazer carreira, pensava, incómodo naquela farda feijão verde. Não conseguiu dormir logo, com o barulho na messe dos oficiais, o Passos, amigo e do pelotão, estava de serviço, esperaria por ele para um bate papo, só a luz de presença estava ligada na caserna. Aí pelas onze e meia, ouviu o segundo-comandante, furibundo, a atravessar a parada aos gritos, Cavalaria não era mole e Santarém ainda menos. Parte dos milicianos seguiria para o contingente NATO, em Tancos ou Santa Margarida, outros ainda para África, onde Nambuangongo parecera  coisa séria.

Já perto da uma, e sem que o Passos chegasse, uma algazarra soou na parada, e o tenente Barbeitos, apareceu aos gritos à  porta da caserna e a mandar formar em dez minutos. Mais uma praxe, pensou, enfadado. Todos formados, foram então informados que sairiam para uma missão, em Lisboa. Ordem de equipar o M-64 e G-3 municiada, duas rações de combate por homem, até parecia ter rebentado a guerra, pensou, lembrando a guerra do Solnado, aquele folclore sempre lhe parecera obsoleto e teatral, mas havia que ser resiliente, antes Lisboa que Bissau.No meio do reboliço, descortinou o capitão Maia, o seu patrício, de camuflado e falando com uns graduados. Ordenando sentido, dirigiu-se aos homens na formatura:

-Homens! Se bem que ainda não tenham concluído a vossa recruta, a vossa destreza vai ser hoje testada! Há uma missão a cumprir: marchar para Lisboa, e controlar o acesso ao Banco de Portugal, à Rádio Marconi e ao Terreiro do Paço. Esta missão visa devolver a dignidade ao povo português e demitir o governo, que tarda em arranjar soluções para os problemas do nosso país! Quem estiver contra, que dê um passo atrás!

O que parecia uma praxe, era afinal coisa séria, que fazer? Por um lado, a política pastosa que o atirara para a tropa causava-lhe repulsa, mas e se falhassem, mal tinham feito instrução de tiro, o Forte de Elvas poderia ser o destino da aventura noturna. Ninguém deu passos atrás. Um oficial correu entretanto a falar ao capitão Maia:

-Está tudo em marcha. A senha foi confirmada via Romeo, tudo Oscar Kilo, meu capitão!

-Ótimo! -saltando para um Chaimite, mandou avançar para a porta de armas, pouco passava das três da manhã, nessa noite não haveriam camas à espanhola.

Um esquadrão de reconhecimento com dez viaturas blindadas e outro com cento e sessenta homens, doze viaturas, duas ambulâncias e um jipe saía amotinado para Lisboa, tudo era confuso mas excitante, com sorte talvez ainda essa noite fossem ao Cacau da Ribeira.

A entrada em Lisboa ocorreu pelas cinco e meia. No Campo Grande, um polícia olhou para a coluna, mas não interferiu, manobras militares, com certeza, não dera conta de nenhum alerta. O Passos e o esquadrão dele foram para o Banco de Portugal, Artur e o grupo do capitão Maia tomaram posições no Terreiro do Paço, já as carrinhas com legumes se dirigiam para o mercado da Ribeira. Salgueiro Maia, sem encontrar oposição, contactou um tal Posto de Comando, dando conta da situação:

-"Informo que ocupámos Toledo (T.Paço), Bruxelas (Banco de Portugal) e Viena (Rádio Marconi). Diga se escuta!

-Afirmativo! -respondeu uma voz metalizada do outro lado. -Papa Charlie no controlo!

As coisas pareciam correr bem, até o comandante distrital da PSP apareceu a oferecer colaboração, descongestionando o trânsito, com o amanhecer o 28 para a Graça cruzara já a praça. Artur aproveitou para se dirigir ao capitão Maia:

-Meu capitão, vamos dar cabo do Marcelo, não vamos?

-Podes escrever, Artur, temos de pensar nos nossos filhos, e em Portugal! Esta é a nossa hora! -respondeu, pondo-lhe a mão no ombro. Apesar de sereno, tinha um ar cansado, aparentemente nenhuma coluna mais viria juntar-se-lhes, eram doze blindados com recrutas  contra o poderoso Império português.

Chegando os funcionários aos ministérios, enfim alguns oficiais afetos ao governo apareceram a enfrentar os amotinados, chegando o ambiente a aquecer com as provocações de  Ferrand de Almeida, a recusa dos seus homens em atacar levou os Panhard a passar para o lado dos homens de Santarém. Artur regozijava, a farda verde  da chacota tornava-se aos poucos de verde-esperança.

À medida que as notícias se foram espalhando, as pessoas invadiram as ruas, com um frémito na espinha, Artur viu Mariana a acenar na R. do Arsenal. Um beijo, soprado de longe, foi a certeza do sucesso.

Alucinantes, os acontecimentos sucederam-se: pessoas saindo à rua, saudando e oferecendo cigarros, a deslocação apoteótica para o  Largo do Carmo, o abraço emocionado ao Passos e aos camaradas do esquadrão. Uma florista do Rossio ofereceu-lhe um cravo, logo guardado para Mariana.

Passaram muitos anos, o orgasmo coletivo daquela extraordinária quinta-feira em que não houve instrução de sapadores, mudou o país de forma definitiva. Ainda hoje, advogado em Castelo de Vide, não passa um dia sem que Artur deixe uma flor na soleira da casa onde nasceu o capitão Maia, vertendo uma melancólica lágrima ao lembrar aquela madrugada chuvosa em que um punhado de recrutas saltou à pressa do beliche para um encontro marcado com a História.

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