Cinquenta e cinco
anos, esguio e parco de carnes, diariamente o rabino Salomão Bem Crespe fazia o
trajecto entre a sinagoga de Sintra e a sua casa na rua da Pendôa, onde igualmente
exercia o ofício de alfaiate. A sinagoga fora permitida por aforamento, em
1407, e apesar de tentativas para alargar a judiaria, D. Afonso V ordenara que
apenas a porta pudesse ser usada como local de comércio, estando vedado aos
hebreus vender ou comprar para lá dela, onde, intolerantes, os cristãos velhos
denunciavam com frequência as crianças marranas por brincarem na igreja de S.
Pedro de Canaferrim, para eles, em desrespeito por solo sagrado.
Em Espanha haviam
expulsado os irmãos, valeu na altura o rei D. João, que mandou montar
acampamentos junto à raia para receber os sefarditas fugidos. No entanto,
apenas lhes foi permitido ficar oito meses, e pagando taxas a El-Rei. Nesse
tempo, as famílias judaicas em Sintra eram algumas já: sapateiros, alfaiates e
ferreiros, Jacob de Baiona e Abraão Ruivo haviam sido cidadãos estimados e
Salomão Palaegno um dos principais mercadores. Salomão ia amenizando a vida com
a leitura dos Livros Sagrados na sinagoga, que tinha uma menorah como único adorno, a foragidos de Espanha havia já alojado,
acossados pela maldição do sangue, dito impuro, e a infelicidade de serem
felizes nos negócios.
Corria Dezembro de
1496, foi a vila acordada pela proclamação de um édito real. El-Rei D. Manuel
decretava a conversão forçada dos filhos de Israel, buscassem os marranos a
purificação pelo baptismo e com eles seria magnânimo. Salomão reuniu as famílias
assustadas no terreiro, onde a plebe pedia sangue, pela usura haviam porfiado,
pois que pagassem, semíticos herdeiros de Caifás, que matara Nosso Senhor Jesus
Cristo. Na igreja de S. Martinho, frei Gonçalo do Rosário acicatava a conversão
em incendiadas homilias, marranos para bem longe ou para junto dos gafos de S.
Pedro, exigia, em tom exaltado.
A vila passava nesse
tempo por uma seca prolongada, o que nas igrejas era justificado com a má
influência dos judeus, o Senhor castigava o convívio com os pecadores, e por
tal pecado se mostrava encolerizado com os de Sintra, mandando-lhes a peste em
sinal de ira divina, e assim, nas semanas seguintes, oficiais do Paço correram
ruas e casas, curando de apurar quem era temente a Deus e ao Santo Padre.Preocupado,
Salomão juntou o povo na sinagoga. Velhos recitando salmos, crianças agarradas
às mães, com fé entoaram cânticos que os filhos de Moisés e Salomão repetiam
desde que a terra do leite e do mel fora alcançada, terra prometida bem longe desta,
funesta e madrasta. Com o tempo, alguns converteram-se, era o fogo ou a vida, e
Frei Gonçalo somava baptismos, no momento da água cair, fechavam os olhos e
rezavam pelo povo de Israel. Muitas famílias tentaram fugir, mas o rei,
alertado, mandou fechar os portos. A Rute de Córdova arrancaram os filhos, para
serem educados como cristãos, os que restaram passaram a ser espectros silenciosos,
arrastando como que lepra disfarçada.
Amargurado, Salomão
abandonou Sintra e retirou-se para Lisboa, onde nos anos seguintes exerceu o
ofício de alfaiate perto do Hospital de Todos os Santos.
Dez anos passaram, e
1506 chegou flagelado pela peste. Um dia de Abril, celebravam os cristãos
velhos a Semana Santa, no tempo do Pesach
hebraico, as igrejas encheram-se pedindo pelo fim da praga e redenção das
almas, enquanto inflamados frades vendiam indulgências. Na igreja de S.
Domingos, onde os dominicanos peroravam homilias sobre os males do reino,
alguém durante a missa julgou ver sinais divinos num crucifixo, em comoção anunciando
um milagre e todos chamando a rezar com fervor. Um cristão-novo, porém, arrefeceu
os ânimos, mais não seria que uma candeia acesa ao lado do
crucifixo.Reconhecido como marrano, logo a plebe enfurecida e crente no milagre
se lançou sobre o herege, matando-o, acossada pelos dominicanos, e perseguindo
a eito todos os infiéis à lei de Deus.
Metido com os seus
pensamentos, Salomão Ben Crespe passava a essa hora pelo Rossio, a caminho de
casa. Vergado pela idade e desgostos da vida, e passando à porta da igreja de
S. Domingos, alertado pelo ruído, viu vir em direcção a si um grupo de
exacerbados populares acicatados e gritando Mata!
Mata! Ainda olhou em volta, pensando ser outro o alvo de tal raiva, quando,
agarrado pelos cabelos foi arrastado pela terra, pejada de excrementos,
golpeado e pontapeado, como se a cada pontapé uma chaga de Cristo fosse curada,
e o reino dos Céus garantido. Possesso, um grupo espancava crianças arrancadas
às mães, logo atiradas para uma pilha de lenha que ali se armou, por entre uma guincharia
própria de matança em açougue.
Salomão
fechou os olhos, olhou para o céu, e sorriu, sereno, deixando que o calor
libertador do madeiro lhe queimasse a carne e consumisse o corpo. Preservada
para a eternidade, a sua alma descansaria enfim, o Deus de Israel não o
abandonaria. Até 21 de Abril duraria a sanha, sanguinária e atroz. Nesses dias
de 1506, na era do senhor D. Manuel, venturoso rei de Portugal, o fumo da
perfídia e o esturricado cheiro de justiça enegreciam a capital dum Império
onde o Sol nunca se punha, mas as trevas não largavam.
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