Sintra, 2044.O presidente da Câmara,
Djaló Varela, descendente de cabo-verdianos da Tapada das Mercês, agora
património mundial, saía dos Paços do Concelho no velho Sintra Fórum, para
reunir com o novo ministro europeu da Economia. Lech Zibrinski despachara
dinheiro para obras, e estaria em Lisboa nos dias seguintes.De TGV, seriam 4
horas de Bruxelas a Lisboa, com paragens em Paris e Madrid, com ele e Diógenes
Durão, o delegado para Portugal, acertaria as verbas para o novo CICV de
Sintra.
O concelho crescera, e chegara aos
700.000 habitantes, mais de metade de origem africana, e abrira um novo canal
de TV, o Sintra Network, dirigido por Gustavo Facas, neto dum conhecido DJ dos
anos 10. Concelho multicultural,o o vereador dos media, Simeon Pereira, era um
descendente de romenos radicados no Mucifal.
Varela era dinâmico e audaz. Antigo
rapper, eleito através do Facebook com 2/3 de “gostos”, tinha projectos para o
concelho: a Cidade do Cinema abriria em 2048, bem como a Universidade Cristiano
Ronaldo, em homenagem ao comendador, agora com 70 anos, proprietário do Hilton
da Praia Grande e dum resort de montanha na Pena. No plano desportivo, a fusão
de todos os clubes originara o Sintra SAD, presidido pelo antigo internacional
Nani, depois da união, finalmente disputaria a I Liga.
Com elevada percentagem de
desempregados, designados nas estatísticas como inactivos orgânicos, Varela
criara um plano de reforma para quem tivesse frequentado pelo menos dez cursos
de formação profissional. Mas o principal problema era a violência. Ganhara as
eleições com a promessa de legalizar a criminalidade urbana, desde que não se
ultrapassassem cinco roubos por esticão e três assaltos por ano, considerados
falta leve no cadastro digital. Apesar disso, todas as noites havia desacatos
no metro, em Mem Martins, obrigando à intervenção da Força Ninja, recrutada
entre os veteranos da guerra de 2036 contra a Coreia do Norte, onde Sintra
participara com a Divisão Queijada, integrada no Exército Europeu.
O telemóvel ligou. Simeon anunciava
que o busto do escritor Miguel Real estava pronto para inaugurar, na Volta do
Duche. Com mais de uma centena de e-books editados, era uma referência de
Sintra, em 2019 ganhara o Nobel da Literatura. Ali ficaria, ao lado do Memorial
à Hecatombe de 2011, quando Portugal caíra às mãos da troika. Moradores da
única freguesia de Sintra ali depositavam flores com frequência, exorcizando
esses anos de fome e incerteza, quando muita população perdeu o emprego, e
sobreviveu com o apoio humanitário do Haiti.
Passados os anos, as coisas mexiam de
novo, com Varela, Sintra voltava a ser cool. Desde os anos vinte que se
apostava nas indústrias criativas de base tecnológica, e em empresas startup,
em Morelena e Negrais. Os call centers com videoconferência, os transgénicos de
estufa, a par de fábricas de carros a biodiesel, foram a base da retoma nos
anos 20. Doces tradicionais como a queijada ou o travesseiro haviam
desaparecido, substituídos por uma versão light sem açúcar, no quadro do plano
de combate à obesidade, que igualmente banira o courato, o hambúrguer e o ice
tea. Apostara-se no teletrabalho e na privatização dos serviços: o urbanismo
era agora gerido por uma consultora baseada em Macau, as obras municipais pelo
consórcio Aguiar e Morais, franchisado duma firma de Taiwan, apenas restando
alguns funcionários em permanência, ganhando 300 yuans por mês (o yuan, moeda
chinesa, era agora a moeda mundial, depois do estoiro do euro em 2018, após a
intervenção da troika na Alemanha). Até a justiça fora privatizada, e entregue
a uma holding de magistrados, a Isaltino e Associados, com sede nas ilhas
Caimão e escritório em Lourel Oeste, a nova sede da comarca.
Após a reunião com Zibrinski,
finalmente Sintra teria um CICV-Centro Integrado para a Conservação da Vida,
algo a que antes chamavam hospital, uma empresa de saúde onde os doentes
comprariam quarto e assistência em time-share, podendo trespassá-lo, após o
tratamento e prévia liquidação de impostos. O acesso seria permitido após um
chip do genoma confirmar a doença e a situação fiscal do paciente, gratuito
para todos que se tivessem reformado aos noventa anos e provassem viver em casa
dos pais. Em 2060, finalmente terminaria a revisão do PDM, depois de 70 anos em
análise, a torre biónica da Adraga, com 1000m de altura e dez pisos só para
marisqueiras, enfim ficaria pronta. Então, sim, o Admirável Mundo Novo chegaria
a Sintra, pelas providenciais mãos de Djaló, e longe ficaria a memória dos
terríveis anos 10, dos acampamentos de desalojados em Campo Raso, vítimas do
furacão Gaspar, e da Grande Guerra 2015-2018, entre inspectores das Finanças e
milícias da Resistência.
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