terça-feira, 3 de março de 2015

O Leão de Sintra


Uma da manhã. O vigilante dos Paços do Concelho fechava as portas de madeira e desligava o projector que iluminava o torreão. Em volta, nem vivalma, as chaminés do paço acompanhavam o lento adormecer em noite de lua cheia, cintilante, com o burgo deserto e em silêncio. Repentinamente, o leão de pedra, alva sentinela do vetusto edifício, iluminou-se, parecendo uma lâmpada de néon. Do branco-pedra passou a azulado, os olhos, ganhando vida, ficaram vermelhos, deu um salto resoluto e postou-se frente à Tasca do Manel. Rugindo, e abanando a cabeça, sacudiu-se e caminhou na direcção da estação.

Shintara, o leão de pedra, havia sido em tempos um vizir árabe a quem uma feiticeira há centenas de anos transformara em felino. Durante o dia, hirto e petrificado, contemplava as pessoas atarefadas entrando e saindo, cidadãos tratando de assuntos, funcionários ocupados com processos, vereadores marcando reuniões, os motoristas encostados às paredes. À noite, ganhava vida, que durava até ao nascer do sol, quando inexoravelmente voltava ao pedestal, cumprida a sua missão: fazer justiça a quem a procurara sem resposta, e proteger os fracos, como rei da selva.

Naquela noite, tinha várias injustiças para reparar. Muitas pessoas, e até os jornais haviam já falado dum leão nocturno, deambulando em Sintra, mas como loucos ou ébrios foram tratados. Leão em Sintra, só o Luís Cardoso, replicava o Manel da tasca, aviando uma bica.

Resoluto, Shintara subiu a rua. O último comboio partira já, só um táxi esperava algum tardio cliente. A primeira paragem foi no Morais. Uma rajada de vento dois dias antes soltara o galho de um plátano sobre o carro de Sandra, faltara sinalização advertindo do perigo, a câmara que não, não podia indemnizar, fizesse uma exposição. Sandra ganhava o ordenado mínimo num escritório em Lourel, o seguro não cobria os danos, tinha de trabalhar todos os dias, havia a creche do Ruca para pagar. Decidido, fintando dois polícias, Shintara rugiu, bandeou a farta juba, e como por milagre, o velho carro em segunda mão ficou novo e sem riscos, os vidros repostos, os galhos da árvore cortados, obviando novo acidente. Esboçando um ar feliz, fechou os olhos e seguiu em frente, a primeira missão estava cumprida.

Na Portela de Sintra, morava Dolores, funcionária da Câmara. Fazia quinze dias que Miguel caminhava para lá em busca duma licença que permitisse a festa da escola do filho, fazia parte da comissão de pais. Dolores estava renitente: era o número de contribuinte, o IRS, o certificado dos bombeiros, a licença de ruído. Passaria a data, e a festa sem licença. Dolores arrastava-se na repartição, farta de trinta anos de câmara e toneladas de papel, restava-lhe o prazer de levantar problemas, pedir mais um impresso, cobrar mais uma taxa. Shintara galgou a varanda de um pulo só, era um primeiro andar antigo, e focando os olhos na cama onde ela e o marido dormiam, rugiu, zangado, levantando-se nas patas dianteiras do lado de fora da vidraça. Só os dois o viram e ouviram, tinha o dom de só se deixar ver a quem queria. Aterrados ante a fantasmagórica visão, fugiram para a sala aos gritos. Shintara fixou Dolores, encolhida a um canto, em camisa de noite, e sentenciou, gutural:

-Se alguma vez mais criares dificuldades para vender facilidades, a fúria de Shintara cairá sobre ti, imprestável! Faz o teu trabalho e serás reconhecida! -deixando a velha funcionária a correr em busca de um Valium e o marido para a cozinha a emborcar uma aguardente velha.

A última paragem foi no Linhó. Fernando metera um projecto para ampliar a casa onde vivia, a mãe, idosa a quem não queria internar num lar, precisava de um quarto, simples, familiar. O arquitecto da Câmara levantava problemas: a volumetria, o PDM, a legenda. Shintara entrou na vivenda onde o arquitecto morava, este dormia, com a televisão ligada. Desta feita, por hipnose fez aparecer em sonhos ao arquitecto a visão de uma família feliz na casa ampliada, a avó com os netos aos pés, um sorriso de felicidade, enquanto ele, roncando, esboçava um sorriso e com a mão ensaiava o que parecia uma carícia a um deles na ponta da almofada.

A noite ia longa. Um sem abrigo ajeitou o caixote de cartão e a placa de esferovite que lhe servia de colchão, a lua cheia reflectia a sombra do felino no empedrado. Era tempo de voltar, depressa clarearia, os primeiros funcionários da manhã rotineiramente chegariam para mais um dia de guias e certidões, arrastando-se como zombies flagelados pelos cortes e perda de direitos. De volta à câmara, pulou para o pedestal, rugiu uma última vez, e lentamente foi ficando azulado, prateado e logo branco, alvo, orgulhoso.

Pelas sete horas chegaram as senhoras da limpeza, o Manel na tasca aqueceu a máquina do café e o comboio voltou a cumprir partidas e chegadas.

À porta de casa, boquiaberta, Sandra ria e chorava ao mesmo tempo, carro renovado, despesa riscada. Dolores chegou simpática e pontualmente abriu o guichet. Prestável, o arquitecto requisitou o processo das obras da casa de Fernando e lá apôs um parecer favorável. Interiormente, Shintara regozijava, logo tornaria à sua ronda justiceira, nova noite, novo périplo. Nessa tarde ainda, sentiu uma festa na cabeça. Era Miguel, que apressado nele se amparava, ia buscar a licença para a festa da escola. Isenta de taxas.

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