Os frascos
lá estavam, no quarto do Hotel de Nice, e ele olhava-os, com os olhos já
vidrados, denotando uma calma que nunca alcançara em vida. José Araújo
acompanhara-o no fim, em Lisboa Pessoa receberia uma carta, já póstuma. Enquanto o médico
confirmava o óbito, José recolhia os papéis, e cobria o corpo
de Mário de Sá-Carneiro, que partia aos vinte e cinco anos.
Morte
esperada, pensou Araújo, nunca a imagem de Tomás Cabreira pondo termo à vida no liceu Camões sumira da mente de Mário. Com ele escrevera Amizade, uma peça de teatro, nenhum vivia já.
Na última
noite estivera sempre absorto, escrevendo e lembrando os rostos que lhe tinham
fugido, na estrada da vida. A mãe, que partira tendo ele dois anos, o pai,
ausente em África, o Santa-Rita Pintor, sempre encharcado em aguardente, Helena, a
francesa que o amara a troco de alguns francos. Só ficara José, e a estricnina.
Paris. O
deslumbramento, primeiro, após a desilusão de Coimbra, o Café de la Paix e
Baudelaire, as garçonettes, Pigalle, Picasso no Boulevard des
Capucines. E a rotina, a usura de novidade, a solidão, esperando a
mesada que o pai enviava de África. Ainda voltara a Portugal, dois anos antes,
para com o Pessoa e o Almada lançar o Orpheu. Mas Lisboa era pequena e
serôdia e apenas saíram dois números, pagos pelo pai. E Paris de
novo, as cartas para Pessoa confessando a
perdição, ambos nos seus labirintos. Poeta do impossível, incapaz de amar
e ser amado, enredara-se na busca da salvação
impossível.
José Araújo
recordava-o ao fundo da cama, o éter num psyché de madeira,
a si confessara cansaço, e vontade de desistir. Cansaço por abraçar e
não ver braços, cansado de não ser. Morreria a tempo de não ter biografia. Nos
últimos tempos, escrevera a Pessoa, mas este não respondera, alma gémea, partilhava dos mesmos sentimentos, não podia escrevê-lo, ateando impulsos
suicidas no amigo. Não serviria de nada, o plano estava gizado. Órfão de amor,
pária de si mesmo, ficar-se-ia pelo prefácio de um livro deliberadamente
incompleto.
Enterrado o amigo, José Araújo voltou a Lisboa, uma semana mais tarde
encontrou Pessoa no Martinho.
Acabrunhado, tomava um café e uma aguardente, a poção que o mantinha vivo entre
heterónimos tão cambaleantes quanto ele. Levou-lhe poemas que Mário
deixara, para só a ele entregar. Guardou-os no bolso do sobretudo,
e incompreensível ripostou-lhe:
-Quem di
diligunt adulescens moritur! Ante o silêncio expectante de Araújo,
traduziu: “Morre jovem o que os Deuses amam". Plauto!
Morrendo
para enfim viver, Mário de Sá Carneiro, decadentista redentor, futurista
sem futuro, esvaíra-se em estricnina, narcisista, morreu quando bem quis,
niilista nas emoções, tristes e trágicas. Escrevera pouco, acrescentando dor no diário da sua morte. Pessoa
sentiu-o, mas nada disse.
Era Junho de
1916. Noite cerrada, no esconso do Largo de S. Carlos, leu as cartas de Mário,
e buscou uns manuscritos na secretária de madeira. Entre as cautelas de penhores e
uma carta astrológica, encontrou o poema-testamento que Mário lhe enviara
antes de morrer:
Hoje, de
mim, só resta o desencanto /Das coisas que beijei mas não vivi... /Um pouco
mais de sol - e fora brasa, /Um pouco mais de azul - e fora além. /Para atingir
faltou-me um golpe de asa... /Se ao menos eu permanecesse aquém...
Emborcou um
absinto, e apagou a luz. A de Mário, acendera-se para a eternidade.
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