A farmácia ficaria de
serviço na noite de fim de ano, a Mafalda assegurava o expediente, Eduardo só
pensava em chegar a Sintra, onde a Sónia esperava com o champanhe e as
passas.
Na farmácia no Cacém,
de tudo vendera já, unguentos para o reumático da D.Marinela, sempre a queixar-se
das artroses, Gurosans para a fauna da noite, malandreca e ressacada,
antibióticos ao Gonçalo, com o pai desempregado. O pior, eram as noites, o
Cacém estava cada vez mais perigoso, e nada como uma farmácia para se percepcionar
a crise.
Levou para casa a
mala com amostras que o delegado de informação médica deixara, no dia
seguinte, feriado, entreter-se-ia a folhear a literatura, os laboratórios estavam
sempre a inventar produtos, que a indústria precisa de ser oleada, bem vira o
que sucedera com a gripe A.
A viagem seria curta,
já pouca gente ia no comboio, mais a caminho da festa, nas docas ou no Terreiro
do Paço. Na carruagem, quatro ou cinco passageiros, um careca com olhar baço,
reflectido no vidro grafitado, duas brasileiras de roupa exuberante, tresandando
a perfume barato, um jovem de óculos com um portátil, falando com amigos no Messenger. Dolente, a viagem era apenas intervalada
por uma voz melosa indicando a paragem seguinte, até a palavra Algueirão soava
bem naquela voz de aeroporto.
Em Rio de Mouro saiu
o careca, com uma maleta, a marmita do almoço por certo, a passagem de ano
seria a dormir, sem disposição para festejos, e entraram quatro jovens
africanos, com piercings reluzentes
como árvores de Natal, bonés da NBA e ténis reflectores. Depois de ruidosamente
pontapearem as cadeiras, marcando o território, e do abrir e fechar de portas, um
deles, com as calças quase pelos joelhos, aproximou-se de Jorge e apontou-lhe
uma faca à jugular:
-Meu,
passa para cá o caroço, e depressa! E não te chibes, que ainda é pior!
Eduardo sentiu uma
lâmina fria na garganta, as brasileiras, surpreendidas, nada disseram, que o
melhor era ficar de fora. Buscou no bolso a carteira, mas só tinha trinta euros,
e cartões de delegados de informação médica.
-Só
isto, sócio? Então hoje não há festa? -pelos vistos teriam
de ir abordar o caixa de óculos, que fazia não ser nada com ele. Eduardo achou
melhor ficar calado. Eram quatro, um sacou os trinta euros, enquanto o da faca o
manteve imobilizado, não fosse pegar no telemóvel e chamar a polícia, depressa
desapareceriam na noite a beber cervejas e enrolar um charro. Subitamente, um
dos sócios, para aí com dezoito anos,
empalideceu e caiu desamparado. Surpreendidos, os outros começaram a desatinar:
-Levanta-te chavalo, estás bezano, meu? – quais baratas tontas, sacudiram-no, sem saber o que fazer. As
brasileiras entreolhavam-se, até parecia coisa do morro.
-O minino bébeu? Nossa, que barra pesada! -comentou uma, sem se
levantar, um decote deixava descobertos uns peitos rijos e salientes. Eduardo virou-se
para eles e interpelou-os:
-Oiçam,
eu sou farmacêutico, percebo destas coisas, deixem-me tirar-lhe a pulsação
-sugeriu, apesar da situação, era um profissional.
O da faca, com o capuz
enfiado, hesitou, mas anuiu, e desviou a lâmina, o rapaz do computador,
aproveitando a trégua inesperada, chegou-se a eles, enquanto o Algueirão ficava
para trás sem ninguém ter saído.
-É
quebra de tensão. Oiçam, tenho aqui uns comprimidos que estimulam o organismo,
isto deve ajudar -diagnosticou, abrindo a mala das
amostras que levava para ler no feriado. Abrindo-lhe a boca, enfiou-lhe uma
cápsula branca, e cinco minutos depois, sentado, já o jovem recuperava, com dores
de cabeça e ar assustado.
-O
melhor é fazeres umas análises, pode ser algo do coração, ainda és novo, puto! -recomendou
Eduardo. Apesar de ter sido assaltado, não resistiu a pôr a mão no ombro do
rapaz, complacente com aquelas vidas que talvez nunca tivessem sido programadas
para ser de outra forma. Acabrunhado, o rapaz, Vando de nome, nada disse. O da
navalha olhou Eduardo nos olhos, e com um ar inexpressivo estendeu-lhe a mão e
devolveu os trinta euros do assalto. Eduardo olhou-os, de relance, e sem
guardar o dinheiro, despediu-se, o comboio chegava a Sintra:
-Bebam
um copo à minha saúde! Bom ano!
E saiu, as
brasileiras também, entrando num carro que as esperava, também o do computador
sumiu na noite fria. Em breve seria ano novo, em bando, os quatro sócios seguiram para a vila, deambulando
junto ao paço. Mais descontraído, e metendo a mão ao bolso, o Vando encontrou a
caixa dos comprimidos com um “Bom 2015” escrito em letras garrafais.