Na casa de Janas há
muitos anos que na árvore de Natal aparece pendurado um envelope vermelho sem
remetente ou destinatário. Tudo começou por causa do tio Álvaro. O velho e
espartano solteirão detestava o Natal, para ele algo a que se acrescia lucro e
IVA. Era avesso às compras, às comezainas pantagruélicas e aos pares de meias
com ursinhos embrulhadas em papéis com fitas cintilantes. Até o Pai Natal era
uma invenção da Coca-Cola, alegava, reprovador.
Sabedora do feitio
torto, naquele Natal Sofia decidiu deixar de lado as peúgas e gravatas às bolas
e foi à procura de algo que o velho tio apreciasse, e a ideia surgiu um pouco
por acaso: Sérgio, o filho mais novo, jogava futebol no colégio, em Dezembro a
sua equipa fora disputar um jogo em Monte Abraão. Em contraste com os
equipamentos limpos e de boas marcas da equipa do Sérginho, os da outra equipa
eram velhos, e as sapatilhas esfarrapadas. O tio Álvaro também fora ver o jogo,
e sentira a diferença entre os que têm e os que anseiam, reais mundos deste
mundo. Os de Monte Abraão perderam o jogo, o tio Álvaro, velho adepto de
futebol, encolheu os ombros e comentou:
-Os miúdos da outra
equipa têm potencial, mas é pena, têm poucas condições, é por isso que muitos
depois desistem. Apesar de torcer pelo nosso Sérgio, gostava que tivessem
ganho! -desabafou, mais expansivo que o habitual.
Nos anos sessenta,
Álvaro Camacho fora treinador de juniores no Seixal, a alguns viu mesmo singrar
nas divisões intermédias, e de todos ficou amigo para o resto da vida. Passados
os anos, e com muitos dos putos já veteranos, tinham por hábito juntar-se e
comentarem os jogos e as carreiras difíceis. O desabafo deu a Sofia uma ideia
para um presente que por certo o levaria a mudar de ideias quanto à data. Divorciada,
e com alguma folga financeira que permitira construir a casa em Janas, tinha um
coração generoso. Uns dias antes daquele Natal de 97, entrou numa loja de
desporto, comprou onze pares de sapatilhas e enviou-as à escola de Monte
Abraão. Na noite de Natal, discretamente, pendurou na árvore cintilante um
envelope vermelho com um bilhete para o tio Álvaro, a oferta das sapatilhas aos
miúdos era o presente dela para ele. Surpreendido, esboçou um sorriso discreto
mas luminoso e naquele ano, depois da ceia, até comeu filhoses e bebeu um
cálice de Porto.
Nos anos seguintes, a
árvore de Natal passou a contar sempre com um envelope vermelho pelo qual um
grupo de crianças ou pessoas carentes beneficiaria: um ano, foi um cheque a um
paralímpico sem meios; outro, um peru para o lar de idosos onde vivia a
Ercília, antiga criada da família, e o envelope surpresa passou a ser o momento
alto do Natal pelo qual o tio Álvaro, rendido, passou a aguardar, sem grandes
exuberâncias, mas interiormente feliz. Religiosamente, era sempre o último
presente a ser aberto na noite de Natal, e com o tempo até o Sérgio e os irmãos
mais novos deixaram de ligar aos brinquedos que sabiam ir receber, antes
ansiosos pelo momento em que se revelasse quem seriam esse ano os contemplados.
O tempo foi passando, e as crianças crescendo, o inevitável envelope nunca mais
perdeu lugar e encanto.
Há dois anos, um cancro
de pulmão fez das suas e o tio Álvaro partiu, levando o homem que detestava o
Natal mas involuntariamente proporcionara vários Natais felizes.
O ano passado, ainda
chorosos pela perda do tio, Sofia e Sérgio, já adulto, como sempre enfeitaram a
árvore junto à lareira onde pontificavam retratos de família, com o tio Álvaro
em destaque. No meio das bolas e luzes, e do presépio da avó Chica, de novo foi
colocado um envelope vermelho, bem ao centro. Foi Sérgio quem cúmplice o
colocou. Antes da ceia do Natal, um segundo envelope adornava outra ramagem, e
à noite mais três se lhe juntaram. Também os mais novos colocaram envelopes,
alegando ser coisa do Pai Natal.
À meia-noite, depois da
ceia, juntaram-se todos à volta da árvore e abriram o envelope com a prenda que
em memória do tio Álvaro iriam oferecer: a Joaninha, duas bonecas para o ATL da
escola, em Morelinho; o Rui, uma bola de futebol para os filhos do Etelvino,
desempregado e em dificuldades; até o Marquitos, na ingenuidade dos seus cinco
anos, ofereceu um desenho, representando o tio Álvaro, de quem vagamente se
lembrava, treinando dois meninos a jogar futebol. Nos natais da casa de Janas,
o espírito de Natal passou a ser o momento da homenagem àquele velho tio avesso
às aparências, e a ser mais importante dar que receber. É Dezembro de Natal e
está frio, na rádio toca Rudolph the Red Nosed Reindeer, e fico por aqui, que
há envelopes para ir comprar…
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