Envolvo num
grosso jaquetão e com o chapéu enterrado até às orelhas, desafiando o invernoso
Dezembro, D. Fernando saiu das Necessidades com ar cansado e o rosto deformado
pela doença. Elise não quis ir, mas nem o frio nem as dores o demoveram da
récita em S. Carlos, onde se apresentava “Os Huguenotes”, de Meyerbeer. S.
Carlos era a sua segunda casa. Em S. Carlos estivera com Maria, em S. Carlos se
apaixonara por Elise, frágil donzela disfarçada de pajem, no “Baile de
Máscaras”. Nesse dia enviara um bilhete ao Fraschini, para que lha
apresentasse, aí o romance começou.
-Para S. Carlos, Majestade?
-perguntou o cocheiro, reverente.
-Não, ainda não…-respondeu com voz
trémula, hesitando -Vamos primeiro pelo
Rossio, preciso de apanhar ar, vai andando por aí até eu dizer, que ainda falta
uma hora...…
Nessa noite,
Fernando de Saxe-Coburgo estava particularmente melancólico. Lembrava o filho
Pedro, precocemente colhido pela morte, a corte, que nunca aceitara a sua
Elise, mesmo fazendo-a condessa, os ódios de Maria Pia e suas fúrias latinas.
Regressara recentemente da Alemanha, onde visitara Antónia, em Sigmaringen, na
véspera voltara a falar com o Serpa Pimentel sobre o testamento, um lento adeus
estava já em curso.
Lisboa
estava deserta nessa noite fria, a récita não iria esgotar e as tosses de S. Carlos
seriam poucas, por certo. O elenco era razoável, e o tenor promissor, com o
libretto em torno dos amores de Valentine e Raoul. Como Tristão e Isolda, Romeu
e Julieta, Daphne e Chloé. Ou Fernando e Elise…
Elise. Antes
de sair das Necessidades tomaram chá na biblioteca. Passara o dia cansado,
ofegante, olhava e em volta via sombras desfocadas, mirando-a na bergére roxa,
a custo lhe desvendava o vulto. Uma mão quente e macia confirmava a certeza
duma paixão de vinte anos, flirtando-a primeiro e desposando-a depois, contra
tudo e contra todos.
-Fernando, não devia sair nesse estado!
–advertiu Elise, maternal. As noites
estão frias e…
-Mas a música é quente, Elise. Só a música me aquece, por
estes dias….
E fechando
os olhos relembrou as noites em S. Carlos, os saraus na Pena, Paris. Arfando no
cadeirão, pareceu escutar uma orquestra invisível, e qual maestro regendo, as
mãos dançaram no vácuo, trémulas e magras de carne.
-Elise, diga-me, meu anjo, têm vindo flores da estufa da
Pena?
-Todos os dias, Fernando. Apesar do Inverno, todos os
dias um estafeta vem trazer plantas da feteira, para os arranjos do palácio.
O velho rei
sorriu. De todas as obras a que se dedicara, nenhuma como aquela lhe dera tanto
prazer. O Eschwege e o Cifka eram homens de bom gosto, mas fora ele quem
idealizara sala a sala, pintura a pintura, um portentoso ninho à semelhança da
sua Gotha natal, ali foi feliz com o seu Graal mais valioso: Elise. Pouco lá
ia, agora, a viagem cansava-o e Kessler desaconselhava, um resfriado traiçoeiro
poderia agravar-lhe a saúde já frágil.
-Deve estar lindo, o jardim...-pensou. E
lembrou o eucalipto plantado no dia do casamento, marco de amor de duas almas
que tardiamente se encontravam. Ele já viúvo, estrangeiro num país de querelas,
dedicado aos seus quadros e partituras, ela, a jovem promessa lírica que um dia
o Lusitânia trouxe a Lisboa.
Tossindo,
pediu mais um chá, Elise insistiu que se deitasse, cancelando S. Carlos. Sentia
náuseas, incómodas dores no rosto, como se uma tenaz castigadora o apertasse.
Resistiu, há já dois meses pensava ver essa récita. Levantou-se e saiu na
berlinda, ceariam no regresso.
S. Carlos
deslumbrava, com a parafernália de dourados, serafins e veludos. D. Fernando
ocupou o seu camarote, enterrou-se no libretto e ignorou os cortesãos, que,
bajuladores, o saudavam da plateia. A função foi um sucesso, mais de sete
minutos de palmas e chamadas ao palco, noite cheia afinal de contas. Ao sair do
camarote, tropeçou num degrau e caiu desamparado, batendo com a cabeça na
parede. Ainda atordoado, pareceu-lhe ver, disforme, uma valquíria que lhe
estendia a mão, ao lado uma outra tocava harpa, e sentiu-se levitar,
lentamente, um violoncelo invisível chorava a sua música favorita. Deu a mão à
valquíria e dançando com as mãos, regendo a orquestra, suspirou, sorrindo,
antes de entrar em coma: Elise….
Que maravilha!
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