Como de costume
Baltasar, Gaspar e Melchior, amigos e sócios na ourivesaria, passaram o Natal
juntos, e à meia-noite trocaram presentes e comeram bolo-rei. Solteirões os
três, Baltasar era o mais velho e gerente da loja, muitas alianças de casamento
vendera, mas nunca a dele, a olho nu distinguia um fio de ouro de um
pechisbeque.Com Gaspar iniciara o negócio anos antes, correndo feiras e
mercados antes de finalmente se estabelecerem numa zona elegante. Melchior,
mestiço, retornara de África com a descolonização e conheceu-os num cruzeiro à
Turquia, acabando por partilhar a casa no Banzão.
Na manhã de 25 de
Dezembro coube a Melchior ir despejar o lixo, caixas e restos de camarões da
ceia, que o bacalhau não era tradição. Tinham uma empregada duas vezes por
semana, a Maria, que por ser feriado estava de folga, eles mesmo acomodariam o
essencial, e para espairecer iriam almoçar à Ericeira, apesar do tempo frio,
daria para desentorpecer as pernas.
Já Melchior entrava
em casa quando ouviu um restolhar junto ao contentor, algum cão buscando as sobras,
pensou. Curioso, aproximou-se, uma alcofa atada com um fio de nylon parecia conter algo, agitando-se
ligeiramente. Espreitando de soslaio, assombrado, deparou-se-lhe um bebé ainda
com sangue no corpo, não teria mais que umas horas de vida, fora abandonado
no dia de Natal. Ainda atónito Olhou em redor, ainda atónito, tentando descortinar
alguém nas redondezas, e com o receio de quem nunca pegou num recém-nascido,
agasalhou-o com o casaco de lã e levou-o
para casa.
Baltasar barbeava-se,
enquanto Gaspar fazia zapping, todos
os canais davam a bênção do Papa, o passo assolapado de Melchior com um volume
nos braços intrigou-os
-Depressa!
Vejam só o que estava no lixo! Não há direito!
–Melchior exibiu o ensanguentado rebento, um rapaz, segundo verificou. Gaspar e
Baltazar acorreram, atarantados, Baltasar ainda com creme da barba, inocente, o
pequeno dormitava.
-Tem
de se avisar a polícia. Mas esperem, vamos dar-lhe banho primeiro
-aventou Gaspar, correndo a buscar um alguidar com água quente.
-E comida? Há algum biberão?
-Melchior,
mete-te no carro e vê qual a farmácia de serviço. Traz fraldas e um biberão. Ah
e pergunta o que é que se dá de comer nestas idades! -logo
destinou Baltazar, ourives baby-sitter,
sem experiência de crianças.
Entretanto o bebé
acordou, desfazendo-se num pranto. Enquanto Melchior não voltava, foram-lhe
pondo leite nos lábios, que ele logo sugou, instintivo. Regressado Melchior,
dividiram tarefas, e uma hora depois dormitava já na cama do Baltazar, protegido
por almofadas para não cair.
Maria chegou,
entretanto, apesar de ser feriado, passava a ver se era preciso alguma coisa.
Vinte e dois anos, separada do Zé Luís, entretanto despedido do Ikea, ficou
abismada com a história e logo se prontificou a tomar conta do pequeno. Ela
própria tivera recentemente um aborto involuntário e agora caía-lhe um presente
de Natal no presépio do Banzão. Chegada a polícia, foram todos para a GNR de
Colares, onde os dois guardas de serviço colocaram a cesta em cima da
secretária, junto a uma árvore de Natal, na televisão cantava-se o Adeste Fidelis. Seguiria para uma
instituição de acolhimento, mas Maria e os três amigos quiseram acompanhar o
caso, se ninguém o quisesse, estavam interessados em criá-lo, crente, Gaspar
associava o sucedido a mais que coincidência.
Reluzindo com o
reflexo das luzes da árvore no rosto minúsculo, o pequeno sorria na alcofa, com
todos a mirá-lo, embevecidos.
Sobre o rio de
Colares, duas pombas esvoaçavam, chaminés fumegantes anunciavam o lento acordar
da manhã de Natal, a vida renovava-se e o que por certo seria o drama de mais
uma vida madrasta, foi o prenúncio de novo começo na vida sempre a recomeçar.
-Há-de
chamar-se Salvador! -profetizou Maria, a quem uma lágrima
no olho adoçou o sorriso cheio, se tudo corresse bem, a criança teria mãe e três
tios, tudo prenda de Natal.
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