quarta-feira, 31 de dezembro de 2014

Noite de fim de ano



A farmácia ficaria de serviço na noite de fim de ano, a Mafalda assegurava o expediente, Eduardo só pensava em chegar a Sintra, onde a Sónia esperava com o champanhe e as passas.

Na farmácia no Cacém, de tudo vendera já, unguentos para o reumático da D.Marinela, sempre a queixar-se das artroses, Gurosans para a fauna da noite, malandreca e ressacada, antibióticos ao Gonçalo, com o pai desempregado. O pior, eram as noites, o Cacém estava cada vez mais perigoso, e nada como uma farmácia para se percepcionar a crise.

Levou para casa a mala com amostras que o delegado de informação médica deixara, no dia seguinte, feriado, entreter-se-ia a folhear a literatura, os laboratórios estavam sempre a inventar produtos, que a indústria precisa de ser oleada, bem vira o que sucedera com a gripe A.

A viagem seria curta, já pouca gente ia no comboio, mais a caminho da festa, nas docas ou no Terreiro do Paço. Na carruagem, quatro ou cinco passageiros, um careca com olhar baço, reflectido no vidro grafitado, duas brasileiras de roupa exuberante, tresandando a perfume barato, um jovem de óculos com um portátil, falando com  amigos no Messenger. Dolente, a viagem era apenas intervalada por uma voz melosa indicando a paragem seguinte, até a palavra Algueirão soava bem naquela voz de aeroporto.

Em Rio de Mouro saiu o careca, com uma maleta, a marmita do almoço por certo, a passagem de ano seria a dormir, sem disposição para festejos, e entraram quatro jovens africanos, com piercings reluzentes como árvores de Natal, bonés da NBA e ténis reflectores. Depois de ruidosamente pontapearem as cadeiras, marcando o território, e do abrir e fechar de portas, um deles, com as calças quase pelos joelhos, aproximou-se de Jorge e apontou-lhe uma faca à jugular:

-Meu, passa para cá o caroço, e depressa! E não te chibes, que ainda é pior!

Eduardo sentiu uma lâmina fria na garganta, as brasileiras, surpreendidas, nada disseram, que o melhor era ficar de fora. Buscou no bolso a carteira, mas só tinha trinta euros, e cartões de delegados de informação médica.

-Só isto, sócio? Então hoje não há festa? -pelos vistos teriam de ir abordar o caixa de óculos, que fazia não ser nada com ele. Eduardo achou melhor ficar calado. Eram quatro, um sacou os trinta euros, enquanto o da faca o manteve imobilizado, não fosse pegar no telemóvel e chamar a polícia, depressa desapareceriam na noite a beber cervejas e enrolar um charro. Subitamente, um dos sócios, para aí com dezoito anos, empalideceu e caiu desamparado. Surpreendidos, os outros começaram a desatinar:

-Levanta-te chavalo, estás bezano, meu? – quais baratas tontas, sacudiram-no, sem saber o que fazer. As brasileiras entreolhavam-se, até parecia coisa do morro.

-O minino bébeu? Nossa, que barra pesada! -comentou uma, sem se levantar, um decote deixava descobertos uns peitos rijos e salientes. Eduardo virou-se para eles e interpelou-os:

-Oiçam, eu sou farmacêutico, percebo destas coisas, deixem-me tirar-lhe a pulsação -sugeriu, apesar da situação, era um profissional.

O da faca, com o capuz enfiado, hesitou, mas anuiu, e desviou a lâmina, o rapaz do computador, aproveitando a trégua inesperada, chegou-se a eles, enquanto o Algueirão ficava para trás sem ninguém ter saído.

-É quebra de tensão. Oiçam, tenho aqui uns comprimidos que estimulam o organismo, isto deve ajudar -diagnosticou, abrindo a mala das amostras que levava para ler no feriado. Abrindo-lhe a boca, enfiou-lhe uma cápsula branca, e cinco minutos depois, sentado, já o jovem recuperava, com dores de cabeça e ar assustado.

-O melhor é fazeres umas análises, pode ser algo do coração, ainda és novo, puto! -recomendou Eduardo. Apesar de ter sido assaltado, não resistiu a pôr a mão no ombro do rapaz, complacente com aquelas vidas que talvez nunca tivessem sido programadas para ser de outra forma. Acabrunhado, o rapaz, Vando de nome, nada disse. O da navalha olhou Eduardo nos olhos, e com um ar inexpressivo estendeu-lhe a mão e devolveu os trinta euros do assalto. Eduardo olhou-os, de relance, e sem guardar o dinheiro, despediu-se, o comboio chegava a Sintra:

-Bebam um copo à minha saúde! Bom ano!

E saiu, as brasileiras também, entrando num carro que as esperava, também o do computador sumiu na noite fria. Em breve seria ano novo, em bando, os quatro sócios seguiram para a vila, deambulando junto ao paço. Mais descontraído, e metendo a mão ao bolso, o Vando encontrou a caixa dos comprimidos com um “Bom 2015” escrito em letras garrafais.

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