A carrinha ficou no
estacionamento enquanto os dois jovens se abasteciam no Pingo Doce da Portela,
à porta, ruidosos alunos do liceu devoravam pizza e refrigerantes. Pelo carro
das compras, levaram só alimentícios: frangos, arroz, pão, um deles comprou o
jornal. A velha carrinha pão de forma estava em desalinho com jornais velhos
pelo chão, um bidon de gasolina, toalhas de praia, e CD’s de Lady Gaga no
porta-luvas. Na Portela ninguém os conhecia, mas há três dias pelo menos
tomavam um galão e um croissant no café do Baptista, sempre à mesma hora e
antes de irem ao supermercado.
A Gracinda do 26,
frente ao jardim, reparou que os dois indivíduos estavam no segundo esquerdo.
Desde que o Ramiro morrera, três meses antes, a casa ficara fechada, a única
filha vivia em Londres e só fugazmente lá ia. Amigos ingleses, pensou, cuscando
atrás das cortinas, a carrinha era velha e pareciam estrangeiros. Já comentara
até com a Ercília do primeiro esquerdo, quando esta saiu a passear o cão. Os
novos ocupantes pouco se viam e ignorava o que fariam lá dentro, só havia uns
tarecos que a filha do Ramiro deixara. Ao fim de cinco dias, sumiram e a
carrinha pão de forma não voltou a ser vista, para a vizinhança caso arrumado e
as conversas de novo sobre a crise e a ciática da Gracinda.
Uma semana depois,
almoçava ela umas pataniscas, o Jornal da Tarde abriu com a notícia de que se
suspeitava que jihadistas ingleses teriam estado em Portugal, em trânsito para
a Síria, onde integrariam as fileiras do Estado Islâmico. Casas nos arredores
de Lisboa estariam a ser alvo de observação pela polícia portuguesa, bem como estrangeiros
fora dos circuitos turísticos. Qual clique repentino, a Gracinda lembrou-se dos
rapazes do segundo esquerdo, partiram como chegaram e tinham um sotaque
esquisito, correu a comentar com a Ercília. Era isso, só podiam ser eles, um
telefonema para a esquadra despoletou uma visita ao local, à cautela, havia que
apurar. Alertada, uma equipa da SIC plantou-se no local, transmitindo em
directo, logo atraindo a CNN e outros canais. Gracinda e Ercília desdobravam-se
em entrevistas, à TVI perguntaram mesmo quando seriam convidadas para o Goucha,
para terem tempo de arranjar o cabelo.
Montado o perímetro,
chegaram as minas e armadilhas e os habituais reformados do jardim, arranjada
uma ordem judicial, a porta foi franqueada, mas aparentemente nada de estranho
foi detectado, se bem que jornais ingleses dessem azo a suspeitas. Atraídos pelo
circo mediático, os vizinhos desdobravam-se em comentários, o Vítor vira-os no
café do Baptista, tinham aspecto de terroristas, sim senhor, um tinha até uma
T-Shirt com as palavras Sex Bomb estampadas.
Passaram uns dias,
recolhidas impressões digitais e com a ajuda da Europol, lá se descobriu que eram
apenas amigos da filha do Ramiro. Tendo ela oferecido a casa para uns dias em
Portugal, já de volta a Inglaterra estranharam a visita da Scotland Yard.
Estudantes, tinham ido conhecer Sintra e como estivesse bom tempo, haviam
ficado uns dias a fazer praia.
As notícias reportando
estes factos não sossegaram Gracinda, ali havia tramóia. Eram terroristas, sim
senhor, mas a polícia não podia admitir, para não espantar outros que cá
estivessem, com esta se ficava, tendo ido passear à vila, todos os turistas lhe
pareceram estranhos. O marido da Alzira explicou-lhe que os tais jihadistas
eram uns barbudos que queriam restaurar o Califado, e o Castelo dos Mouros era
um alvo a recuperar, mil anos depois. Que tratantes, comentou com a Ercília,
escutadas notícias sobre pepinos infectados, só poderia ser coisa desse tal
califa, e à cautela não voltou a comprar mais, poderiam estar contaminados.
Com os dias, a coisa
saiu da actualidade e as novidades passaram a ser as transferências do Benfica.
A casa do Ramiro continuou fechada, para ela perigoso esconderijo de bandidos,
que andava para aí uma seita que só visto, já nem o nosso cantinho escapava.
Chegado o mês de Julho, Gracinda foi de férias para a terra, o assunto morreu e
Sintra saiu do mapa mediático, voltando ao movimento do Pingo Doce e aos
pacientes a caminho das análises, até a escola fechou para só abrir em
Setembro.
No final do mês, com a
Portela deserta e os serviços a meio gás, três indivíduos com um Megane
alojaram-se no prédio ao lado do da Gracinda, transportando caixotes e sacos
pretos colados com fita adesiva, despovoado o bairro, nem se deu por eles. Na
segunda noite, com um pano com as palavras
Euskadi Ta Askatasuna estampadas, e ladeados por uma bandeira com uma
serpente enrolada num machado, os forasteiros, encapuzados, gravaram um vídeo
que mais tarde discretamente deixaram na Zara no Cascaishopping. Anunciando um
atentado, a mensagem não deixava dúvidas sobre os planos da ETA, razão tinha a
Gracinda, de férias na terra, a Portela estava a virar um santuário terrorista.
Tem muita piada este seu texto. Gostei e dou-lhe os meus parabéns.
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