Omar chegara
ao Andaluz pelo tempo das laranjas, passando o mar antes cruzado por Tarik e
Tarif, para os arredores de Ushbuna o mandaram: Xintara, terra de clima frio e
solo fértil, urgia ocupar o qala’â, o
castelo escarpado vizinho de Ushbuna. Al Munim Al-Himiari, estudioso e
introspetivo, seguiu-o, apontando notas e recolhendo plantas, mais dado às
letras que à cimitarra. Do rei de Al-Batayaws tinham partido ordens rigorosas,
Al Muttawakkil queria os arredores de Ushbuna protegidos, face à ameaça
almorávida. Al Munim, uma vez chegados, deteve-se admirado com os suculentos
frutos e o âmbar que havia na costa. O rei aftássida, de origem berbere, já
possuía ligações a cidades próximas, ocupado o castelo, impunha-se ocupar o território,
levar noras e charruas e a palavra do Profeta às terras dos infiéis kafirun.
Belicoso mas
obediente, Omar instalou-se no qala’â,
construção de soga e tissão, revestida de pedras argamassadas. Dali se dominava
o mar e Ushbuna, os campos e o povoado. Guarnições foram destacadas para Banu
Qasim e para Qu’al-luz, ao longo da estrada romana. Ergueu uma mesquita, onde os
fiéis acorriam ao vozear do muezzin,
nas várzeas mandou que se plantassem árvores de fruto, se instalassem famílias,
e se ensinasse a Palavra. Al Munim, que entretanto desposou Fátima, instalou-se
em Maçfal, terra de bom pasto para as alimárias, grato pelas mercês
conseguidas, e em paz com os kafirun,
fiel à jihad, não das armas, mas dos
corações.
Omar tinha uma
postura diversa, e mais hostil, aos kafirun
idólatras havia que vergar e impor os ensinamentos de Muhamad. Uma vez teve que
castigar um kafir apanhado a roubar
um alqueire de favas em Al Marje, a sharia
não deixava fuga: havia que lhe decepar a mão, para que não repetisse. Misericordioso,
Al Munim pediu perdão para o ladrão, fora para comer que roubara:
-Allah u akbar, misericordioso xeque Omar! –abordou
Al Munim, encontrando-o no soukh, um
dia depois- sei que prendeste um kafir,
em Al Marje, conheço esse homem, tem
quatro filhos sem malga onde comer, de férteis que são as terras, pouco dano
terão feito as favas, por certo!
-As salaam alekum! -saudou Omar,
apressado- os anciãos não me perdoariam,
Al Munim, se não atuasse. Acaso dás mostras de ceder na fé e desdenhar os
ensinamentos de Muhamad, que Alá o guarde?
Al Munim
quedou em silêncio. Longe da medina e dos mullahs,
tornara-se mais tolerante, depois de chegar a Xintara. Mais tarde, Omar mandou que
lhe levassem o kafir ao castelo. O
ladrão era um velho escanzelado, temente ao Deus dos hebreus, e não comia há
uma semana, a mulher definhava, acometida de febres. Omar, mirando-o de alto abaixo
ergueu a voz e sentenciou:
-Respeitar o Livro Sagrado é o maior dever do
Andaluz, kafir! -gritou, para o velho acabrunhado- nunca ouviste falar no sagrado Corão?
O velho
tremia que nem varas verdes, presente, Al Munim contemplava-o, apiedado. Omar,
garante da ordem e do Livro, levantou a voz e recitou uma sura, a mesma que escutara vezes sem conta na madrassa de Fez:
-"Ó incrédulos! Não adoro o que adorais!
Nem vós adorais o que adoro! E jamais adorarei o que adorais! Nem vós adorareis
o que adoro! Vocês com a religião de vocês, e eu com a minha!" – e
rematou, triunfante:
-A mão que roubou não pode voltar a roubar! É essa a
lei dos justos! Entendes, kafir?
O velho
tremia, com os olhos colados no chão, humilhado na alcáçova de Xintara. Já Omar
mandava decepar a mão criminosa, quando Al Munim se adiantou, respeitoso e
ponderado:
-Alá, o misericordioso, que esteja guardado no
paraíso, é exemplo de liberalidade para com a humanidade. Perdoar, é mostrar o
caminho, e abrir as portas do Céu! Este homem tirou para comer, não por luxúria
ou maldade, mas por fome e miséria. Aplique-se a lei, sim, grande Omar, mas
ganhando o coração dos incrédulos, e assim os kafirun verão quem é o verdadeiro
Deus, o Único, o
Misericordioso! Não disse o profeta, que Alá o guarde, "vocês com a vossa
religião, e eu com a minha?".
Impressionado
com Al Munim, e vendo a tremura do velho esfomeado, Omar acabou mandando que o
levassem, sem o olhar de frente. Por esta lhe pouparia a mão, trabalharia porém
durante um ano na horta do cahrói a
quem roubara as favas. O Al-Islam
chegava a Xintara, novas gentes lavravam os campos e estudavam os astros,
paredes meias com outros credos e palavras, do mesmo Deus, quem sabe, assim
convivendo alguns séculos mais à sombra do cala'â
e do Crescente.
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