quarta-feira, 30 de setembro de 2015

O boicote eleitoral

 

Serafim, o funcionário da junta, foi o primeiro a chegar com os boletins de voto, na mesa da secção eram os do costume, que a sanha pelos cinquenta euros e dia livre no dia seguinte dera direito a disputa. A Cesaltina já estivera na mesa muitas vezes, era agora a vez do Castro, o barbeiro, ser o escrutinador. Como sempre, a escola primária servia de
secção de voto, só dois partidos mandaram observadores, o Tiago, estudante de Arquitectura, e o Tavares, da loja de ferragens.
 
A freguesia era estável. Os mais idosos votaram pela manhã, alguns com o livro de missa na mão, o Falcato, do partido do governo, votou às oito e dez, e ficou a cumprimentar os vizinhos, pelo sim pelo não, a sugerir que pensassem bem, que os outros não eram de fiar. Sabedor, o dr. Crespo, do partido adversário, postou-se vinte metros antes do Falcato, na primeira linha de apertos de mão, um e outro respeitando os quinhentos metros.
 
Pelas nove e meia, só uma vintena tinha já votado. A D. Irene esqueceu-se do cartão, mas a mesa reconheceu a octogenária, decana da aldeia, o rapaz do Bloco torceu o nariz, voto na direita, por certo, melhor seria ter ficado em casa. Também o Tomé da funerária votou cedo, comentando que nem nesse dia deixava de ir às urnas, e avisando para se escolher bem, para se evitar um grande enterro. Na mesa, os afectos ao governo sorriram, nervosos mas descontraídos. As manas Rodrigues, Clotilde e Zezinha uma do PSD, outra do PS, chegaram sem pressa de votar, a que ganhasse teria o lanche pago pela outra, com scones e chá aromático, insistiu Clotilde, segura da vitória.
 
Pelas dez horas, chegou o Avelino, já entrado nos setenta, a mulher morrera um ano antes, e entretinha o tempo no café do Brás. Ainda ressacado da véspera, ao entrar na secção, tropeçou numa vala, estatelando-se e ficando com as calças ensopadas de lama.
 
Prestáveis, o Falcato e o dr. Crespo, adversários eleitorais, logo se uniram num bloco central de ajuda. Avelino, que pensara votar cedo para cair na cama a curá-la, começou a invectivar a junta pela falta de obras, e logo um comício foi improvisado à porta da secção de voto, cinco eleitores opinavam em roda junto dele, antes de se decidirem a  entrar:
 
-Isto é uma vergonha! Andamos a pagar para estes tipos comerem todos do mesmo tacho, obras é o que se vê. O povo é que é culpado, a carneirada anda a dormir, é o que é! -o fato enlameado e o ar zangado faziam do Avelino um inesperado descamisado, a Ermelinda e o Crispim, também com obras aguardando, concordaram, juntando-se ao
protesto:
 
-O Avelino tem toda a razão! Ainda ontem apanhei o presidente da junta, mas ele, nada, que já mandou um ofício, que já mandou um ofício, mas à porta dele já mandou pintar uma passadeira, essa é que é essa! Temos de fazer valer os nossos direitos, senão fazem de nós gato-sapato!
 
Às tantas eram já nove os revoltosos, inicialmente passivos, os delegados dos partidos aproveitaram e cavalgaram a onda, votando neles teriam a hipótese de escolher a lista certa, prometiam. No interior não havia fila, com todos na rua à volta dos lesados, contra os políticos que se enchiam e não faziam obras. Ganhando força e já desperto da ressaca, o Avelino alvitrou um boicote às eleições, e subindo para cima dum banco dirigiu-se à pequena multidão apelando à tomada da escola, pondo-se à cabeça do grupo. Alertado pelo barulho, juntou-se o pessoal que bebia no café do Brás, dirigindo-se à Mesa, urgia fazer justiça:
 
-Ó Castro, toca a arrumar a tralha e a encerrar a mesa dos votos! Aqui o povo não vota mais enquanto a junta não fizer obras, isto já passou das marcas! -e com a ajuda de mais dois, atiraram a urna ao chão, fazendo voar os votos como confetti. As manas aplaudiam, divertidas, perdiam a aposta do lanche mas ganhavam uma Maria da Fonte.
 
A Clotilde, que detestava a Cesaltina, aproveitou e postou-se frente a ela, o poder era deles agora, ruborizada, a Zézinha ordenou ao Castro barbeiro para não levantar cabelo, e subindo a uma cadeira, dirigiu-se aos insurrectos:
-Os políticos não passam a vida a falar em voto útil? O voto só é útil para quem o recebe, assim sendo, daqui não vai nenhum, que o povo já não vai em cantigas! Queremos a rua arranjada, e é para ontem!
 
O Falcato e o dr. Crespo, representantes dos partidos do centrão, entreolharam-se, urgia uma aliança para repor a ordem, que votassem, que eles depois usariam de influências para uma rápida conclusão das obras. Avelino estava de pedra e cal:
 
-Não se vota, nem vota mais ninguém! -e pegando no isqueiro, escrutinou os primeiros votos nulos do país, a GNR de Sintra vinha a caminho, mas era tarde, invocando tumulto, o Castro já fechara a secção de voto, vistas bem as coisas, repetindo-se a votação até seriam mais cinquenta euros.
 
Duas horas depois, armado com o ponteiro da escola, qual metralhadora, e ladeado pelas manas Silva, do comité improvisado, Avelino dava entrevistas à televisão, que o povo era de antes quebrar que torcer, sem arranjo das ruas o povo não votaria. Ah, e também queria a limpeza da roupa. Sinuosos, o Falcato e o dr. Crespo mostraram compreensão, prometeram tudo pagar, votando, e mais, votando neles, logo se resolveria a questão da vala.
 
Findo o dia, o país fizera a sua escolha, e apenas quatro mesas haviam boicotado, a do Castro, nos arredores de Sintra, era uma delas. Vítima do desmazelo da junta e já trôpego com o sétimo bagaço, o Avelino celebrou no café do Brás a sua primeira maioria absoluta.