segunda-feira, 23 de março de 2015

Viúvos de Orpheu


Os frascos lá estavam, no quarto do Hotel de Nice, e ele olhava-os, com os olhos já vidrados, denotando uma calma que nunca alcançara em vida. José Araújo acompanhara-o no fim, em Lisboa Pessoa receberia uma carta, já póstuma. Enquanto o médico confirmava o óbito, José recolhia os papéis, e cobria o corpo de Mário de Sá-Carneiro, que partia aos vinte e cinco anos.

Morte esperada, pensou Araújo, nunca a imagem de Tomás Cabreira pondo termo à vida no liceu Camões sumira da mente de Mário. Com ele escrevera Amizade, uma peça de teatro, nenhum vivia já.

Na última noite estivera sempre absorto, escrevendo e lembrando os rostos que lhe tinham fugido, na estrada da vida. A mãe, que partira tendo ele dois anos, o pai, ausente em África, o Santa-Rita Pintor, sempre encharcado em aguardente, Helena, a francesa que o amara a troco de alguns francos. Só ficara José, e a estricnina.

Paris. O deslumbramento, primeiro, após a desilusão de Coimbra, o Café de la Paix e Baudelaire, as garçonettes, Pigalle, Picasso no Boulevard des Capucines. E a rotina, a usura de novidade, a solidão, esperando a mesada que o pai enviava de África. Ainda voltara a Portugal, dois anos antes, para com o Pessoa e o Almada lançar o Orpheu. Mas Lisboa era pequena e serôdia e apenas saíram dois números, pagos pelo pai. E Paris de novo, as cartas para Pessoa confessando a  perdição, ambos nos seus labirintos. Poeta do impossível, incapaz de amar e ser amado, enredara-se na busca da salvação impossível.

José Araújo recordava-o ao fundo da cama, o éter num psyché de madeira, a si confessara cansaço, e vontade de desistir. Cansaço por abraçar e não ver braços, cansado de não ser. Morreria a tempo de não ter biografia. Nos últimos tempos, escrevera a Pessoa, mas este não respondera, alma gémea, partilhava dos mesmos sentimentos, não podia escrevê-lo, ateando impulsos suicidas no amigo. Não serviria de nada, o plano estava gizado. Órfão de amor, pária de si mesmo, ficar-se-ia pelo prefácio de um livro deliberadamente incompleto.

Enterrado o amigo, José Araújo voltou a Lisboa, uma semana mais tarde encontrou Pessoa no Martinho. Acabrunhado, tomava um café e uma aguardente, a poção que o mantinha vivo entre heterónimos tão cambaleantes quanto ele. Levou-lhe poemas que Mário deixara, para só a ele entregar. Guardou-os no bolso do sobretudo, e incompreensível ripostou-lhe:

-Quem di diligunt adulescens moritur! Ante o silêncio expectante de Araújo, traduziu: “Morre jovem o que os Deuses amam". Plauto!

Morrendo para enfim viver, Mário de Sá Carneiro, decadentista redentor, futurista sem futuro, esvaíra-se em estricnina, narcisista, morreu quando bem quis, niilista nas emoções, tristes e trágicas. Escrevera pouco, acrescentando  dor no diário da sua morte. Pessoa sentiu-o, mas nada disse.

Era Junho de 1916. Noite cerrada, no esconso do Largo de S. Carlos, leu as cartas de Mário, e buscou uns manuscritos na secretária de madeira. Entre as cautelas de penhores e uma carta astrológica, encontrou o poema-testamento que Mário lhe enviara antes de morrer:

Hoje, de mim, só resta o desencanto /Das coisas que beijei mas não vivi... /Um pouco mais de sol - e fora brasa, /Um pouco mais de azul - e fora além. /Para atingir faltou-me um golpe de asa... /Se ao menos eu permanecesse aquém...

Emborcou um absinto, e apagou a luz. A de Mário, acendera-se para a eternidade.

sábado, 21 de março de 2015

Sintra, 2044






Sintra, 2044.O presidente da Câmara, Djaló Varela, descendente de cabo-verdianos da Tapada das Mercês, agora património mundial, saía dos Paços do Concelho no velho Sintra Fórum, para reunir com o novo ministro europeu da Economia. Lech Zibrinski despachara dinheiro para obras, e estaria em Lisboa nos dias seguintes.De TGV, seriam 4 horas de Bruxelas a Lisboa, com paragens em Paris e Madrid, com ele e Diógenes Durão, o delegado para Portugal, acertaria as verbas para o novo CICV de Sintra.

O concelho crescera, e chegara aos 700.000 habitantes, mais de metade de origem africana, e abrira um novo canal de TV, o Sintra Network, dirigido por Gustavo Facas, neto dum conhecido DJ dos anos 10. Concelho multicultural,o o vereador dos media, Simeon Pereira, era um descendente de romenos radicados no Mucifal.

Varela era dinâmico e audaz. Antigo rapper, eleito através do Facebook com 2/3 de “gostos”, tinha projectos para o concelho: a Cidade do Cinema abriria em 2048, bem como a Universidade Cristiano Ronaldo, em homenagem ao comendador, agora com 70 anos, proprietário do Hilton da Praia Grande e dum resort de montanha na Pena. No plano desportivo, a fusão de todos os clubes originara o Sintra SAD, presidido pelo antigo internacional Nani, depois da união, finalmente disputaria a I Liga.

Com elevada percentagem de desempregados, designados nas estatísticas como inactivos orgânicos, Varela criara um plano de reforma para quem tivesse frequentado pelo menos dez cursos de formação profissional. Mas o principal problema era a violência. Ganhara as eleições com a promessa de legalizar a criminalidade urbana, desde que não se ultrapassassem cinco roubos por esticão e três assaltos por ano, considerados falta leve no cadastro digital. Apesar disso, todas as noites havia desacatos no metro, em Mem Martins, obrigando à intervenção da Força Ninja, recrutada entre os veteranos da guerra de 2036 contra a Coreia do Norte, onde Sintra participara com a Divisão Queijada, integrada no Exército Europeu.

O telemóvel ligou. Simeon anunciava que o busto do escritor Miguel Real estava pronto para inaugurar, na Volta do Duche. Com mais de uma centena de e-books editados, era uma referência de Sintra, em 2019 ganhara o Nobel da Literatura. Ali ficaria, ao lado do Memorial à Hecatombe de 2011, quando Portugal caíra às mãos da troika. Moradores da única freguesia de Sintra ali depositavam flores com frequência, exorcizando esses anos de fome e incerteza, quando muita população perdeu o emprego, e sobreviveu com o apoio humanitário do Haiti.

Passados os anos, as coisas mexiam de novo, com Varela, Sintra voltava a ser cool. Desde os anos vinte que se apostava nas indústrias criativas de base tecnológica, e em empresas startup, em Morelena e Negrais. Os call centers com videoconferência, os transgénicos de estufa, a par de fábricas de carros a biodiesel, foram a base da retoma nos anos 20. Doces tradicionais como a queijada ou o travesseiro haviam desaparecido, substituídos por uma versão light sem açúcar, no quadro do plano de combate à obesidade, que igualmente banira o courato, o hambúrguer e o ice tea. Apostara-se no teletrabalho e na privatização dos serviços: o urbanismo era agora gerido por uma consultora baseada em Macau, as obras municipais pelo consórcio Aguiar e Morais, franchisado duma firma de Taiwan, apenas restando alguns funcionários em permanência, ganhando 300 yuans por mês (o yuan, moeda chinesa, era agora a moeda mundial, depois do estoiro do euro em 2018, após a intervenção da troika na Alemanha). Até a justiça fora privatizada, e entregue a uma holding de magistrados, a Isaltino e Associados, com sede nas ilhas Caimão e escritório em Lourel Oeste, a nova sede da comarca.

Após a reunião com Zibrinski, finalmente Sintra teria um CICV-Centro Integrado para a Conservação da Vida, algo a que antes chamavam hospital, uma empresa de saúde onde os doentes comprariam quarto e assistência em time-share, podendo trespassá-lo, após o tratamento e prévia liquidação de impostos. O acesso seria permitido após um chip do genoma confirmar a doença e a situação fiscal do paciente, gratuito para todos que se tivessem reformado aos noventa anos e provassem viver em casa dos pais. Em 2060, finalmente terminaria a revisão do PDM, depois de 70 anos em análise, a torre biónica da Adraga, com 1000m de altura e dez pisos só para marisqueiras, enfim ficaria pronta. Então, sim, o Admirável Mundo Novo chegaria a Sintra, pelas providenciais mãos de Djaló, e longe ficaria a memória dos terríveis anos 10, dos acampamentos de desalojados em Campo Raso, vítimas do furacão Gaspar, e da Grande Guerra 2015-2018, entre inspectores das Finanças e milícias da Resistência.

terça-feira, 10 de março de 2015

A máquina de viajar no tempo


No laboratório da Calçada das Necessidades, o professor Guimarães e o seu assistente Guilherme ultimavam a experiência com que finalmente se demonstraria a possibilidade de viajar no tempo, a máquina, criada a partir de um aparelho de tomografia axial computorizada, permitiria, segundo ele, o transporte ao passado, a experiência decisiva estava marcada para essa noite:
-Caro Guilherme, de acordo com Einstein, o tempo passa mais lento à medida que um objeto se aproxima da velocidade da luz, logo viajar mais rápido que a luz abrirá a possibilidade de viajar no tempo. A ideia é entrar num buraco negro e penetrar numa estrela em fim de vida, que ao colapsar entrará num anel de neutrões rotativo. Este produzirá uma força centrífuga suficiente para impedir a formação de uma singularidade. Como o buraco negro não tem uma singularidade, vamos penetrá-lo usando este aparelho, sem ser esmagados pela força gravitacional do seu centro! -o professor chegava ao momento alto da sua carreira, a experiência que até ali só o cinema e a ficção haviam explorado. Guilherme acompanhava o entusiasmo do mestre, professor de Física na Universidade de Lisboa. - Ao atravessarmos, vamos sair num buraco "branco" que em vez de atrair o que estiver ao alcance da sua força gravitacional para dentro de si, vai empurrar tudo para fora e para longe. Esse buraco branco criará a possibilidade de viajar no tempo!
Preparados os fatos térmicos, programaram a máquina e experimentaram uma primeira viagem, curta: Lisboa e aquele mesmo local, o ano: 1835.
Ativado o engenho, depois de náuseas e duma sensação de vertigem incontrolável, que durou menos de trinta segundos, aterraram desgovernados num celeiro onde dois cavalos relincharam à chegada do inesperado volume. Ainda tontos e de olhos esbugalhados, confirmaram o sucesso da experiência: mesmo em frente e de construção recente, estava o Palácio das Necessidades, onde a guarda real rendia a parada e um padre saia do palácio. O professor dirigiu-se a uma taberna, num esconso perto, e perguntou o que se passava:
-Vossas mercês são de fora? Então não sabem que o marido da rainha está à morte? Pobre homem, ainda agora chegou a Portugal…- respondeu um galego, saíndo com um barril.
Guilherme recapitulou os conhecimentos de História, pelas suas contas o doente só poderia ser o príncipe Augusto de Leuchtenberg, primeiro marido de D. Maria II, chegara a Portugal em Janeiro desse ano, mas viria a morrer de difteria dois meses depois. Aí, teve uma ideia luminosa:
-Professor, podíamos ajudar a resolver este problema. Sabe que o príncipe morreu de difteria? Podíamos usar os conhecimentos da medicina que já possuímos, e tentar salvá-lo!
-Boa ideia, Guilherme. Vamos ao palácio, tentaremos apresentar-nos como físicos experimentados, a ver o que sucede! Temos de ser discretos, e arranjar roupas da época!
Com facilidade o professor conseguiu acesso ao palácio, chorosa, a rainha antevia já um desenlace ao fim de dois meses de casada, qualquer conselho seria bem-vindo. Efetivamente, as amígdalas e faringe do doente desenvolviam uma membrana de pus, a produção da toxina e a sua libertação no sangue poderiam levam à morte cerebral. Sacando duma mala que trouxera do futuro, o professor, perante a incredulidade dos físicos presentes, administrou ao doente uma vacina que atuaria sobre o sistema imunológico, bem como penicilina e eritromicina, para destruir as bactérias nocivas. Dois dias depois, a febre baixou, o príncipe deu sinais de melhoras e missas de júbilo foram rezadas por toda a cidade, o pior parecia ter passado. Os dois estranhos, a par de acompanharem a convalescença do paciente, visitavam Lisboa, tirando notas, e apresentavam-se como académicos vindos da Prússia, a recuperação do marido da rainha afastava suspeitas.
Três dias depois, discretamente, voltaram ao presente, a registar a experiência, e preparar novas viagens. O professor Adérito, um colega de Sintra ligara entretanto, queria trocar ideias com Guimarães sobre um acelerador de partículas. Sempre disponível para o Adérito, lá foi, era um velho amigo. Para seu espanto, à saída de Lisboa apenas havia árvores e campos de trigo, a estrada de Sintra era um mero tapete em macadame e as hortas povoavam a paisagem, sem vestígio de comboio, do IC-19 ou da selva de betão a que já se habituara. Na serra de Sintra, para seu espanto, desaparecera o Palácio da Pena, e só o castelo dos Mouros e o Paço da Vila subsistiam, ao abandono. Abordando um transeunte, à chegada, sondou-o sobre o que sucedera:
-Palácio da Pena? Ó amigo, ali nunca houve Palácio nenhum. Quando muito está lá uma ruína dum convento antigo, daqui até lá acima é só mato e pedras. Isto em Sintra, nunca ninguém fez nada! -suspirou, em torno do Paço havia um pequeno terreiro, e vinte a trinta casas rústicas, nada estava como poucos dias antes. Num arremedo luminoso, percebeu o que acontecera, e sem chegar a falar com o colega, voltou para Lisboa, precisava de falar com Guilherme urgentemente:
-Gulherme, temos de voltar ao passado de novo, aconteceu uma coisa terrível!
-O que foi professor? Baixaram o rating do país de novo? Isso já não é novidade…
-Pior! Ao salvarmos a vida do príncipe Augusto, alterámos o futuro!
-Como assim?
-D. Maria II, depois de enviuvar, casou em segundas núpcias, em 1836, como é sabido. Ora ao salvarmos a vida do primeiro marido, o segundo, D. Fernando Saxe-Coburgo não chegou a ser rei de Portugal, e como tal nem o Palácio da Pena nem tudo o que ele planeou foi construído. Mudámos a História de Portugal!
-Oh diabo, não nos lembrámos disso…- o assistente coçava a cabeça, fora ele que de boa-fé sugerira salvar o moribundo príncipe com difteria.
-Temos de voltar lá e deixar a História cumprir o seu destino!
Nessa noite, voltaram a acionar a máquina do tempo, lá deixando falecer, no meio do choro geral, o marido da rainha de Portugal. Detiveram-se porém alguns meses desta vez, a estudar os costumes da época, sempre cuidando de em nada contribuir para alterar o futuro. Quando os esponsais de D. Maria II e D. Fernando finalmente se realizaram, disfarçado de convidado no banquete, e exercitando os três anos de alemão no Goethe Institute de Lisboa, Félix Guimarães aproximou-se do novo rei, louro e de cabelos desalinhados, e meteu conversa:
-Majestade, vai gostar muito da sua nova pátria. Olhe, sugiro que vá até Sintra, é um sítio maravilhoso e com um clima ameno e prazenteiro, semelhante ao do seu país. Poderia até fazer lá uma casa para o Verão, a rainha iria adorar….

terça-feira, 3 de março de 2015

O Leão de Sintra


Uma da manhã. O vigilante dos Paços do Concelho fechava as portas de madeira e desligava o projector que iluminava o torreão. Em volta, nem vivalma, as chaminés do paço acompanhavam o lento adormecer em noite de lua cheia, cintilante, com o burgo deserto e em silêncio. Repentinamente, o leão de pedra, alva sentinela do vetusto edifício, iluminou-se, parecendo uma lâmpada de néon. Do branco-pedra passou a azulado, os olhos, ganhando vida, ficaram vermelhos, deu um salto resoluto e postou-se frente à Tasca do Manel. Rugindo, e abanando a cabeça, sacudiu-se e caminhou na direcção da estação.

Shintara, o leão de pedra, havia sido em tempos um vizir árabe a quem uma feiticeira há centenas de anos transformara em felino. Durante o dia, hirto e petrificado, contemplava as pessoas atarefadas entrando e saindo, cidadãos tratando de assuntos, funcionários ocupados com processos, vereadores marcando reuniões, os motoristas encostados às paredes. À noite, ganhava vida, que durava até ao nascer do sol, quando inexoravelmente voltava ao pedestal, cumprida a sua missão: fazer justiça a quem a procurara sem resposta, e proteger os fracos, como rei da selva.

Naquela noite, tinha várias injustiças para reparar. Muitas pessoas, e até os jornais haviam já falado dum leão nocturno, deambulando em Sintra, mas como loucos ou ébrios foram tratados. Leão em Sintra, só o Luís Cardoso, replicava o Manel da tasca, aviando uma bica.

Resoluto, Shintara subiu a rua. O último comboio partira já, só um táxi esperava algum tardio cliente. A primeira paragem foi no Morais. Uma rajada de vento dois dias antes soltara o galho de um plátano sobre o carro de Sandra, faltara sinalização advertindo do perigo, a câmara que não, não podia indemnizar, fizesse uma exposição. Sandra ganhava o ordenado mínimo num escritório em Lourel, o seguro não cobria os danos, tinha de trabalhar todos os dias, havia a creche do Ruca para pagar. Decidido, fintando dois polícias, Shintara rugiu, bandeou a farta juba, e como por milagre, o velho carro em segunda mão ficou novo e sem riscos, os vidros repostos, os galhos da árvore cortados, obviando novo acidente. Esboçando um ar feliz, fechou os olhos e seguiu em frente, a primeira missão estava cumprida.

Na Portela de Sintra, morava Dolores, funcionária da Câmara. Fazia quinze dias que Miguel caminhava para lá em busca duma licença que permitisse a festa da escola do filho, fazia parte da comissão de pais. Dolores estava renitente: era o número de contribuinte, o IRS, o certificado dos bombeiros, a licença de ruído. Passaria a data, e a festa sem licença. Dolores arrastava-se na repartição, farta de trinta anos de câmara e toneladas de papel, restava-lhe o prazer de levantar problemas, pedir mais um impresso, cobrar mais uma taxa. Shintara galgou a varanda de um pulo só, era um primeiro andar antigo, e focando os olhos na cama onde ela e o marido dormiam, rugiu, zangado, levantando-se nas patas dianteiras do lado de fora da vidraça. Só os dois o viram e ouviram, tinha o dom de só se deixar ver a quem queria. Aterrados ante a fantasmagórica visão, fugiram para a sala aos gritos. Shintara fixou Dolores, encolhida a um canto, em camisa de noite, e sentenciou, gutural:

-Se alguma vez mais criares dificuldades para vender facilidades, a fúria de Shintara cairá sobre ti, imprestável! Faz o teu trabalho e serás reconhecida! -deixando a velha funcionária a correr em busca de um Valium e o marido para a cozinha a emborcar uma aguardente velha.

A última paragem foi no Linhó. Fernando metera um projecto para ampliar a casa onde vivia, a mãe, idosa a quem não queria internar num lar, precisava de um quarto, simples, familiar. O arquitecto da Câmara levantava problemas: a volumetria, o PDM, a legenda. Shintara entrou na vivenda onde o arquitecto morava, este dormia, com a televisão ligada. Desta feita, por hipnose fez aparecer em sonhos ao arquitecto a visão de uma família feliz na casa ampliada, a avó com os netos aos pés, um sorriso de felicidade, enquanto ele, roncando, esboçava um sorriso e com a mão ensaiava o que parecia uma carícia a um deles na ponta da almofada.

A noite ia longa. Um sem abrigo ajeitou o caixote de cartão e a placa de esferovite que lhe servia de colchão, a lua cheia reflectia a sombra do felino no empedrado. Era tempo de voltar, depressa clarearia, os primeiros funcionários da manhã rotineiramente chegariam para mais um dia de guias e certidões, arrastando-se como zombies flagelados pelos cortes e perda de direitos. De volta à câmara, pulou para o pedestal, rugiu uma última vez, e lentamente foi ficando azulado, prateado e logo branco, alvo, orgulhoso.

Pelas sete horas chegaram as senhoras da limpeza, o Manel na tasca aqueceu a máquina do café e o comboio voltou a cumprir partidas e chegadas.

À porta de casa, boquiaberta, Sandra ria e chorava ao mesmo tempo, carro renovado, despesa riscada. Dolores chegou simpática e pontualmente abriu o guichet. Prestável, o arquitecto requisitou o processo das obras da casa de Fernando e lá apôs um parecer favorável. Interiormente, Shintara regozijava, logo tornaria à sua ronda justiceira, nova noite, novo périplo. Nessa tarde ainda, sentiu uma festa na cabeça. Era Miguel, que apressado nele se amparava, ia buscar a licença para a festa da escola. Isenta de taxas.