quarta-feira, 24 de fevereiro de 2016

As time goes by





O Douglas DC-3 proveniente de Casablanca aterrou era já noite na Granja do Marquês. Fugindo da barbárie nazi, Ilse Lund e Victor Lazlo logravam escapar do major Strasser, com o apoio de Rick e a complacência do capitão Renault. Victor, o chefe da resistência checa no exílio, esperaria em Portugal o necessário visto para a América, a partir de onde reorganizaria a oposição à ocupação nazi.

No aeródromo, em Sintra, aguardava-os Mário Soares, destacado para os acompanhar pelo sector intelectual do MUD, enquanto não viesse o almejado visto. Num Ford de 1935, Mário levou-os para Sintra e alojou-os no Hotel Netto, sob o falso nome de Walinski, polacos de visita a um amigo, Elieser Kamenesky, actor russo que chegara a entrar no Pátio das Cantigas. A estadia seria de duas semanas, e Soares o elemento de ligação.

No dia seguinte, já acompanhado pela noiva, Maria Barroso, levou-os a conhecer o Estoril e a costa. Mais faladora, Ilse interessou-se pelo português:

-Já alguma vez esteve em Paris, Mário?

-Nunca, miss Ilse, embora tenha a maior paixão pelos escritores franceses. O Anatole France, o Malraux, que é nosso camarada sabia…-comentou, num francês arrevesado, línguas não eram o seu forte.

-Ah Paris... -suspirou, transportando-se para as recordações duma existência curta, mas cheia de desencontros. Em Paris fora feliz com Rick, aí o perdera, em Casablanca de novo a vida os cruzara, mas sem voltar a juntar.

Mário era um idealista. Recrutado para a célula intelectual dos comunistas, os contactos com a resistência no exterior eram-lhe familiares, tinha como controleiro um professor de geografia do Colégio Moderno, o circunspecto Álvaro Cunhal. Curioso, sondou Victor sobre o curso da guerra. Subitamente desperto, o checo ganhou interesse na conversa:

-A Résistance está muito activa, Mário, os partisans estão espalhados por todo lado, muitos patriotas lutam contra os ocupantes. Vichy, creio, estará por dias. Em Lyon, a propaganda aumentou desde que mataram o Marc Bloch, sabia?

-Quando a guerra acabar, também Salazar será afastado, Victor. Ele faz–se neutro, mas é um germanófilo convicto. Lisboa está infestada de alemães, e você é um alvo a abater, tem de se resguardar. Não aconselho que saiam de Sintra até chegarem os papéis! –recomendou.

Os dias seguintes foram descontraídos. De manhã, passeio até Seteais ou pela serra, pela tarde, ler e escrever cartas, sempre com o pensamento nos camaradas em perigo, em Praga e por toda a Europa. Vaclav fora capturado, e internado em Teresin, muitos estavam na clandestinidade ou em parte incerta.

Duas semanas eram passadas, quando ao descer para o pequeno-almoço Ilse reparou em dois vultos com malas de viagem, falando em inglês com o recepcionista do Netto. Um, alto, vestia uma gabardina branca e chapéu preto, o outro, um negro, exibia as reservas para o hotel. Sentiu um frémito quando reconheceu as personagens: eram Rick e Sam, o pianista do Rick’s, em Casablanca, logo correndo para eles com incontida alegria. Surpreendido ao vê-la, o negro rasgou um sorriso franco e sonoro:

-Por aqui, miss Ilse? Gosh, como o mundo é pequeno! -saudou sorridente.

-Que fazem aqui, quero saber tudo! -Ilse ganhou um ânimo jovial ao reencontrar quem nunca quis perder. Meio retraído, Rick sondou-a:

- E… Victor…?

-Está no quarto, escrevendo. Mas, digam-me, o que fazem aqui, na Europa?

Antes que Rick lhe respondesse, o pianista adiantou as novidades:

-Mr.Rick vendeu o café, miss Ilse, vamos a caminho de França. O capitão Renault foi colocado em Marselha, e convidou-nos para abrir lá um casino. Depois de a guerra acabar, vai ser o nosso novo sócio.

-Que bom para vós…-comentou Ilse, surpreso, Rick estava parco em palavras. De novo o destino os juntava, e logo iria separar, nunca fruindo senão momentos de felicidade breves.

Sabedor da chegada dos amigos, Victor desceu a cumprimentá-los, e nessa noite jantaram no salão do Netto. Quatro vidas diferentes e desencontradas numa Europa destroçada reuniam-se numa bela e serena vila portuguesa, para quem a guerra era visível sobretudo pela praga do racionamento. Depois do jantar, Victor recebeu uma chamada de Mário, e, premonitório, Sam afastou-se para fumar um cigarro, deixando Rick e Ilse a sós. Na varanda do hotel, com vista para o castelo mouro e as chaminés alvas do palácio mesmo ao lado, deixaram-se ficar em silêncio, vendo esvoaçar a baforada do cigarro na noite fresca. Passada alguma hesitação, Ilse decidiu-se a falar:

-Rick, eu….

-Palavras não alterarão nada, Ilse –interrompeu o americano, pondo-lhe um dedo nos lábios. -Victor precisa de ti, e eu nunca te poderei dar a felicidade que mereces. Somos pessoas de mundos diferentes, e hoje eu não pertenço a nenhum.

Terminado o cigarro, Rick saiu a deambular sem rumo, a noite estava amena, mas brumosa. Acabrunhada, Ilse passou ao salão, onde Sam descobriu um piano velho. Instintivamente, agarrou-o pelo braço e fez-lhe um pedido:

-Toca, Sam.Toca “As time goes by”….

O pianista hesitou, mas anuiu, puxou do banco, e uma vez mais a nostálgica melodia ecoou no salão do Hotel Netto. Definitivamente, seguiriam o seu rumo.

Três dias depois, Mário e Maria levaram Ilse e Victor ao aeródromo, a caminho da América, enquanto no mesmo dia Rick e Sam voaram para Marselha.

A guerra acabou, e Victor finalmente voltou a Praga, mas novo percalço o esperaria. Estaline substituíra os anteriores ocupantes por novos da sua confiança, adiando por vários anos a esperança na liberdade. Acabou preso, e morreu em 1950, amargurado, e sem ver o seu país livre. Ilse foi para a América, então, e dedicou-se a escrever livros para crianças. Rick e Sam, depois de uns anos em Marselha, instalaram-se em Cuba, e lá abriram um casino, onde pontificava um admirador de Sam, um tal Hemingway. Amargurado e refém do álcool, Rick acabou vítima de cirrose, antes da revolução cubana.

Por cá, Mário e Maria casaram, e no fim da guerra ele acabou por se afastar dos camaradas, encetando uma via política reformista, mas sempre contra Salazar. Ainda hoje, na casa em Nafarros, entre centenas de livros e quadros, uma foto de Victor e Ilse recorda os compagnons de route de passagem por um país pardacento no longínquo ano de 1943.

segunda-feira, 22 de fevereiro de 2016

No aniversário de um corvo




Era noite, lunar e cintilante, na finistérrica falésia junto à mata atlântica, um exilado corvo, apátrida de nações, e arauto de futuros que não virão, deambulava, subindo a Caverna, onde explorador buscava a Luz redentora que lhe devolvesse as palavras, capturadas pelos dias, imanentes e expectáveis. Liberto na Caverna, viajara ao Futuro e indomado voltava ao seguro eremitério de cheiro a pinho e a mar, depois de peregrinar por sinuosas grutas, espeleólogo de amarguras. Arqueólogo da ansiedade, voltava à Serra-Mãe que de novo acolhia o filho pródigo. Uma poção fervilhava no caldeirão, apurando, mas não era hora ainda de soltar a Palavra. Faltava o Fogo. O Fogo quente e aconchegado, castigador e puro, vulto ainda apenas, como fauno na noite. Na escuridão, buscava Claridade, encontrando-a, faróis pirilampos  o guiariam ao  promontório-útero onde virariam Fogo, na Luz amenizando a noite céltica.
Essa noite ainda uma pomba o visitaria, parceira de passeios pela falésia sonhando inventados futuros em gritado silêncio. Estoicos e eremitas, absortos sonhavam com a Elba Lunar para onde uma manhã partiriam, labirínticos e trágicos.
Já várias vezes qual corvo anacoreta morrera, e logo como Fénix renascera, tecendo promessas à Luz vaginal. A Lua Cheia ajudaria a soltar aferrolhados silêncios do Cofre do Tempo, juntos e junto ao mar várias vezes ambos haviam partido em barcos para Ítaca, onde formosas Penélopes os esperavam tecendo novelos, para à noite os desfazerem, renovando o Princípio e o Fim, o Alfa e o Ómega. Finda cada Viagem, voltavam, renovados conquistadores da Luz.
Naquela noite, a Lua púrpura de Sintra esbatia a claridade sobre o promontório. Cansado, o corvo sentou-se num penedo de urze, olhando-a. Atlântido bardo do Futuro, na noite do Tempo enviaria poemas mágicos pelo bico duma pomba que buscava a Finisterra.