-Não sou desertor nem
refratário, meus senhores, sou um exilado político! -declarou o russo no Governo Civil após chegar a Lisboa.
Vladimir Ilitch Lenine e sua mulher, Nadia Krupskaya, visitavam Portugal pela
primeira vez depois de anos na Sibéria, para onde ele fora enviado pelos
esbirros de Nicolau II. Vivia em Berna, na Suíça, e com a visita a Portugal
procurava apoios para combater o regime czarista, apelar à unidade proletária e
à revolta contra o capitalismo. Em finais de 1910, a instauração da República
permitira que organizações de trabalhadores se afirmassem, e após um período de
agitação social, sindicalistas reformistas e anarquistas haviam criado a União
Operária Nacional, em rutura com o governo republicano, no seguimento da
repressão que se abateu depois da recusa do governo em discutir as
reivindicações operárias. Fiel às orientações da Internacional Socialista em
Zimmerwald, a União Operária Nacional posicionara-se contra a entrada na Grande
Guerra, e tumultos em Lisboa haviam provocado centenas de mortos e feridos.
Apesar de o Governo ter reduzido o horário dos operários para 8 horas, ocorriam
assaltos a padarias, devido ao aumento do pão. Impedido de voltar à Rússia,
Lenine viajava pela Europa, e o Portugal republicano era um lugar inspirador na
luta contra os Romanov e o capitalismo mundial.
No Governo Civil, mais
preocupados com os protestos do pão, foi olhado com desinteresse, e deixaram-no
seguir. O contacto em Lisboa era Eudóxio Batalha, encadernador e antigo
companheiro de Azedo Gneco, grande figura do socialismo, já falecido. Era um autodidata,
comunicando com Lenine num francês pirrónico, lera Proudhon e Bakunine, e a
Comuna de Paris era o seu modelo. Com Gneco, iniciara-se no Centro Promotor de
Melhoramentos das Classes Laboriosas, e fizera parte do Grupo da Democracia
Socialista, bakuninista e libertária.
Lenine era um cerebral,
achando que só a organização do proletariado sob direção da vanguarda levaria
ao sucesso, e Eudóxio escutou-o com interesse. Contudo, preferia os
arsenalistas do Alfeite, mais eficazes em resultados.
Lenine e Nadia
alojaram-se num hotel da Baixa, a reunião com o núcleo socialista seria em
Sintra, no Centro Republicano, onde estariam sindicalistas da União Operária
Nacional e jornalistas afetos à corrente socialista, pelo que no domingo
seguinte, correligionários convocados por Eudóxio chegaram numa camioneta, que
os recolheu perto do Jardim Zoológico. Depois de os cumprimentar, em francês,
Vladimir explicou ao que ia:
-Tovarich! Camaradas!
Trago até vós a fraterna saudação do povo oprimido da Rússia!. Sei que os trabalhadores
portugueses já se libertaram do rei opressor e da oligarquia, e serão países
como os nossos, de industrialização débil e fracos elos na luta
internacionalista dos operários, quem fará cair as forças do capital e o
imperialismo mundial que lhe dá cobertura. Há que chamar a unir!. Os
capitalistas não são capazes de sacrifícios, está-lhes no sangue explorar! Há
que lutar! A morte de uma organização só acontece quando os de baixo já não
querem, e os de cima já não podem! Operários portugueses, peço-vos, juntemo-nos
para a revolução mundial, organizemo-nos em comités operários, e o futuro
esperançoso do socialismo recompensará a luta dos trabalhadores explorados e
conduzirá ao Homem Novo!
Empolgado, o russo
galvanizou a sala. Ribeiro de Carvalho, um dos jornalistas, ia explicando aos
presentes que há anos que as coisas andavam tremidas na Rússia, e este Lenine
era uma figura grada, o czar não gostava dele, mas era um crânio, advogado até.
Domingos, um jovem anarquista, levantou-se e saudou:
-Em Portugal o povo não
tomou ainda o destino nas suas mãos, infelizmente. E a mensagem que deixamos é
só uma: a luta armada! Só a força da bomba pode liquidar os ricos que pagam
jornas de miséria. Queremos que o povo pegue em armas, e tal como já matámos um
rei que se refastelava à conta do povo, também os que hoje ilegitimamente
exercem o mando serão impiedosamente apeados!
A sala aplaudiu, Lenine,
cerrando o punho, depois de lhe traduzirem as palavras, aprovou, rematando:
-Um dia não muito
distante, surgirá a vanguarda dos povos que estabelecerá o governo dos
oprimidos e famélicos, camaradas! Nas fábricas de Manchester, nas estepes de
Kazan ou nas oficinas de Portugal! Há que vigiar e lutar, pois o Sol será dos
operários e camponeses, dos soldados e dos marinheiros! Ontem em França, amanhã
em Lisboa e S. Petersburgo! Obrigado, camaradas!
A reunião terminou com
promessas de ação, um jantar bem regado na Rinchoa, em casa dum primo de
Eudóxio com vivas à revolução pôs fim ao auspicioso encontro, até Leal da
Câmara fez uma caricatura de Vladimir, que este agradeceu, emocionado.
Passados uns dias,
Lenine voltou para a Suíça, a missão estava cumprida e a semente lançada, por
cá o movimento operário, mais ou menos anarquista, continuou promovendo greves
e atentados bombistas. Dois anos depois, nevava copiosamente em Zurique, um
comboio especial partia para S.Petersburgo com um misterioso passageiro a
bordo. Por uns anos, ventos de mudança iriam soprar a Leste, cantando amanhãs
rumo à Utopia.
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