segunda-feira, 29 de junho de 2015

Ventos de Suão





Seis meses. Seis parcos meses restavam a Cristóvão Valdágua, sentenciou o dr.Chambel, um linfoma desbravando o caminho que conduziria ao desenlace, ingrato e furtivo. Primeiro revoltou-se, pensando em Felícia, nos quarenta anos de casamento, os estudos islâmicos e as viagens no mundo árabe. Agora, ciente da fragilidade da vida, queria usufruir do tempo e ser feliz, e preparar a partida com ela ao lado.

Com uma última viagem procuraria reparar as falhas com Felícia, muitas vezes deixada só com os filhos, sobretudo durante as longas viagens à Turquia, onde investigara sobre a Arca de Noé, em Ararat, merecera um artigo no National Geographic. A Tunísia, amena e mediterrânica, seria o destino do adeus, miscelâneo e tépido. Conformada embora com amargura, Felícia acedeu, em Port El Kantaoui, praia de mar quente e amendoeiras, perderam-se em passeios pela areia, comendo tâmaras ao fim da tarde e partilhando um cúmplice narguilé na na noite estrelada do Magreb, enquanto o muezzin chamava para as preces. Um circuito pela Cartago de Cipião e Jughurta devolveu-o ao mundo de civilizações antigas, agora assaltado por escorpiões e turistas, um peixe fresco em Sidi Bou Said propiciou a felicidade dos momentos simples, avaramente saboreados. Com os medicamentos sempre por perto, Felícia via-lhe a cara a desfigurar, moldando a máscara do fim. Cristovão já não tirava notas, escrevinhava frases, que depois rasgava, indignas de imortalidade, no deserto, agora tão cheio de sentido, descobria pensamentos místicos, amenizando as dores do corpo e da alma dilacerada, e pela última vez, o amarelo vivo das dunas, os palmeirais de Tozeur, o branco espectral do Chott-El-Jerid, os chás de menta nas covas trogloditas, rodeados de inefáveis vendedores.

Em Douz, enfiaram a tradicional djellabia, e andaram de camelo, a ampulheta do tempo ia esvaziando. Como outra seria agora bem-vinda, para acabar os livros e recuperar o tempo desperdiçado. Na tenda que lhes servia de quarto, ao som dum alaúde longínquo, amaram-se como na primeira vez, ainda estudantes em Coimbra.

Na última etapa, depois da cidade santa de Kairouan, a calmaria duma villa em Djerba, cheia de pescadores em batéis e turistas gozando a placidez do azul marítimo. Cansado, Cristovão dispensou as visitas ao soukh, quedando-se pelo hotel, junto ao mar. Felícia e ele, ele e Felícia, de mãos dadas e em silêncio contemplando o sol alaranjado que dominava o horizonte. Na varanda do quarto, Cristóvão acariciou-lhe o rosto e beijou-a:

-Agradeço teres aparecido na minha vida. Adorava ficar ao teu lado, sentir o teu abraço, o teu cheiro, o teu calor! Fostes o anjo que veio até mim e deu luz à minha vida. Mas agora, já não há tempo. Foi -se o tempo…

-Cristovão, não digas nada, meu amor. Ninguém vai partir, vais ver…

Ele pôs-lhe um dedo nos lábios, cerrando-os, e continuou:

-Já não pertencemos um ao outro, tomamos diferentes rumos, agora. Quero que continues na estrada que percorremos. Eu na berma e tu ao centro, esplendorosa!

Fazendo silêncio, continuou olhando o mar, bafejado pelo suão da tarde. Nostálgica, Felicia continuou a conversa:

 -Lembras-te do dia em que me pediste namoro, e te disse que tivesses respeito, e não fosses atrevido? Foi o dia mais feliz da minha vida. Há muito que secretamente o desejava, eu…

A mão de Cristóvão, agarrada à sua, ficou nesse momento morna e sem força, fixo no horizonte, ele sorria inerte e pálido. O Grande Sul levava-o num cavalo alado, soprava uma nuvem de areia dos lados de Monastir. O historiador de temas árabes enfim concluía o derradeiro livro.

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