sexta-feira, 12 de junho de 2015

Verborreia e Gin


A televisão estava ligada e num preto e branco sumido passava pela enésima vez O Pátio das Cantigas, a cena do candeeiro, apesar de vista muitas vezes, era sempre impagável. Concentrado no novo livro e dedilhando o teclado em busca das palavras certas, Aníbal hesitava. Escrever era ingrato, e forçoso se tornava ignorar os leitores, invasores sem licença e profanadores das palavras, interiorizou, pensando uma coisa e escrevendo outra.
 
Aníbal passava um mau bocado. A Luísa deixara-o, o editor atrasava-se no pagamento, carrancudo, o médico torcera o nariz às análises, o fígado estava uma lástima. Despegado, desde que houvesse gin, o talento fluiria à velocidade dum gole, pujante orgasmo da palavra correndo solta até que, saciado e vingador, o dedo se fartasse de espancar o teclado.
A cena do candeeiro transportou-o para a sua realidade. Como o Vasco Santana do candeeiro, sentia uma invasiva solidão. Amigos de sempre haviam-se afastado, vegetava emocionalmente, não arengando a um candeeiro num pátio esconso, mas sobrevivendo náufrago entre palavras soltas. Escrevia vomitando desprezo em livros que talvez alguém lesse, quanto mais não fosse, leria o Semedo da editora.
Cansado do computador, deu um pulo ao café, para mais um gin. Fartara-se do personagem principal e queria matá-lo, mas ainda só tinha trinta páginas, era cedo. Como ele, era um alcoólico perdido, nada de autobiográfico, claro, embora nada os separasse a não ser o facto de o personagem praticar vudu, ao matá-lo, matar-se-ia a si, o resto do livro seria passado em flashback.
Patrícia, universitária de dezanove anos, sempre se interessara por Aníbal, vizinho da rua, um professor já lhe falara dele como grande talento. Lendo o último Philip Roth no café do Borges, observou-o ao entrar, macilento, logo emborcando um gin ao balcão, em nada condizendo com o Aníbal Gralheiro que a crítica saudava como grande autor. Avesso à vida mundana, dava poucas entrevistas, e o editor até concordava, a aura de escritor maldito era boa para o marketing. Já voltava para casa, onde o esperava o Eça, o gato que recolhera na rua, e o teclado, sedento de geniais palavras ou expectante por um delete, quando Patrícia decidiu abordá-lo, um sorriso esfíngico deixou-o interessado:
-Você é o Aníbal Gralheiro, não é? O meu professor já me falou em si! –cumprimentou, de rompante, o Philip Roth na mão deixava perceber ser instruída. Aníbal ensaiou um esgar, mais uma idiota embevecida pela sua obra, pensou, desde que o Vargas do Jornal Literário o chamara de “genial” passara a best-seller no Continente:
-Sim? Também gostou da“Profanação em Líquido”?
-Não! -ripostou, mudando repentinamente de expressão. -Acho a sua obra chata, e  que você é um frustrado, sem sensibilidade para entender os outros. Acho que escreve sobre coisas que não conhece. É uma fraude, um personagem à procura do reconhecimento do autor!
Aníbal embasbacou. Como se atrevia, nunca devia ter lido nada seu, senão sinopses idiotas no Google, que percebia ela de escrita. Simulando indulgência e segurando a situação, lançou-lhe um sorriso cínico, entre o perdido e o conformado:
-Muito bem! Temos novo ogre literário a caminho! Adoro os pseudointelectuais, sabe, são óptimos para levar às vernissages de pintura, ficam bem na fotografia e sempre dão um ar de cultos! -sem as palavras certas, enveredava pelo cliché, magicando como o seu personagem se sairia duma destas, e com uns gin’s de avanço. Ali, era apenas o cliente com a  "crise balcânica", a que cultivava ao balcão do bar, antes de na cumplicidade da noite virar o talentoso e aplaudido autor.
Patrícia sorriu, triunfante, e saiu, deixando um comentário complacente:
-Quando conseguir ser uma pessoa, talvez venha a ser um escritor. Até lá, sabe o que é? É um administrador de fantasmas. E histórias como as suas, não são o meu estilo, prefiro o original à cópia. O sofrimento sempre é mais autêntico, sabe? Tchau!
Calado, o Borges do café escutava, secando um copo com um pano, secretamente concordando com ela. Humilhado, Aníbal pediu outro gin, que despachou num ápice, e saiu, danado. Em casa, pontapeou o portátil, num acesso de fúria, afugentando o Eça, que dormitava, e sentou-se no cadeirão. Na televisão, O Pátio das Cantigas chegava ao fim, o Rufino do candeeiro, por amor à senhora Rosa abandonava a bebida e incensava o leite com a filha do Brasil, todos marchando, felizes para sempre, a palavra FIM depois do beijo deixava-o antever. Apanhando o portátil do chão, sentou-se com a cabeça entre as mãos, e olhando a garrafa do gin, atirou-a contra a parede, o personagem morria antes de nascer.No dia seguinte telefonou à Luísa e com a voz trémula pediu-lhe o contacto do Anselmo, que fizera uma cura de desabituação.

Passado um mês, voltou ao Borges. Numa mesa do fundo, vaporosa, Patrícia tomava café com o namorado. Pediu uma água, que bebeu ao balcão, e ao sair acenou-lhe. Sem que ela tivesse tempo de dizer algo, levantou a mão e ao longe soletrou-lhe um discreto “Obrigado!”.

 

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