Telefonar
ao Rui, porque não? Fazia tempo que não se viam, o novo emprego afastara-o, a
voragem dos dias ia deixando a amizade pelo caminho. Será que ainda há amizades
e não só a necessidade de ter gente à volta, cultivando imagens e não pessoas
de carne e osso? Filipe descrera já da verdadeira amizade, o silêncio de Rui
era frustrante, as coisas apenas pareciam ter durado enquanto não partisse para
melhor, talvez porque os vultos bons dos dias maus lembram a existência desses
dias maus, mesmo quando neles houve amigos leais.
Filipe
sempre estimara os amigos, dos dias bons e dos maus, acreditava que quando
viessem os bons haveriam de celebrar, sobreviventes, sempre acreditara nisso.
Mas não. Aquilo que para ele era amizade, para outros não passava de rotina, meros
figurantes na espuma dos dias. Com namorada nova, Rui, fiel a outros amigos,
não voltou a ligar, e apesar das juras de amizade, sumiu.
Sentado
na esplanada da praia, Filipe saboreou o silêncio, esse sim, verdadeiro e só
dele, cansado do mundo, e de ilusões. Envelhecia-lhe o corpo, e se sempre
procurara manter o espírito jovem e crédulo, tinha de admitir que assim já não
era. Começava a ver mal, ele que sempre se metera com os “caixa de óculos”, não
distinguia já as letras do jornal. O álcool, antes libertador, era agora
pesado, bebidas brancas nunca mais, que o fígado delator se queixava, as caixas
de Ben-Uron antes a apodrecer no armário,
tinham agora saída, logo chegaria a iníqua próstata, a vida a estreitar
caminhos e a fechar portas, logo as farmácias substituiriam os bares, fornecendo
bálsamo para o corpo, e anestesia para a alma.
O
mar era uma coisa estranha. Poderoso, à falta de se poder domar, contempla-se,
como que o querendo amaciar. Apático, Filipe olhou o horizonte e qual diaporama
viu o seu passado em filme, reflectindo como nos seus quarenta e sete anos já
vivera várias vidas, diferentes, sempre com novas histórias e amizades, logo
encerradas em capítulos estanques. E ele, ingénuo, sempre voltando a dar o
benefício à Vida, e esta a jogar às escondidas, trazendo personagens novas de
geografias recentes. Idiota, nunca mais aprendia a acreditar em desacreditar
das pessoas, com a limpidez da verdade escondida na intermitência da farsa.
Mirou
o telemóvel, e correu a agenda com o cursor: o Rui, a Susana, o Beto, a Madalena,
números dantes sinal de alegria, milhentas vezes tocados, eram agora um arquivo
silencioso e morto, o Rui, que diariamente lhe ligava, até o seu número
esquecera, melhor seria apagá-lo da agenda e virar a página.
Era
um lamecha. Crescido nas festas de garagem e nas promessas de amanhãs cantando,
tardio crente na amizade de tudo largar para acorrer aos “seus”, viu-se só. O
mais perturbador é que se sentia estranhamente bem, couraçado de novas
traições, ausente, mas presente para si, nunca como agora apreciava tanto a
solidão, ele que em tempos a receara. Os da sua geração saltitavam do dentista
para o centro de saúde, caseiros, e sem conversa, vencidos da vida e maçadores,
neles revia a sua juventude, mas pouco lhe diziam, sombras nimbadas, mas
etéreas, arquivadas no passado onde pertenciam, tesouro no baú. Aos mais recentes,
agradava-lhe a juventude, os sonhos, o poder ser paternal e irmão mais velho,
companheiro e protector. Tudo era efémero, porém, olhou em volta e tudo lhe
pareceu fugaz, sem futuro, vencidos da vida e sem vida, arrastados pelas mesas
dos cafés ou deambulando pelos shoppings ou
pelo libertador calçadão da praia.
Em
silêncio, foi até ao bar, bebeu uma fraternal cerveja e puxou dum papel a
registar palavras que logo deitaria fora, com os inúmeros guardanapos
rascunhados teria hoje já um livro editado, até chegara a pensar num título, Diário dum Guardanapo sem Futuro. O
empregado da esplanada era da velha guarda, “amigo”, se amigos são todos os que
ficaram na foto, prova estática dum passado a sépia. Não há amigos. Há momentos.
Amigos talvez fossem os que estavam quando o flash disparou. Capturados no passado, porém.
Sentiu
que algo se perdera, e também ele se perdera, curioso, é que ninguém se ousava
encontrar, seguindo o argumento dum filme onde só há enredo em flashback, filmes demodé, de vidas vividas mas arquivadas.
Olhou
para o telemóvel, terminou a cerveja, e sem hesitar, apagou o nome do Rui. A
vida é uma agenda em permanente actualização.
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