sábado, 21 de março de 2015

Sintra, 2044






Sintra, 2044.O presidente da Câmara, Djaló Varela, descendente de cabo-verdianos da Tapada das Mercês, agora património mundial, saía dos Paços do Concelho no velho Sintra Fórum, para reunir com o novo ministro europeu da Economia. Lech Zibrinski despachara dinheiro para obras, e estaria em Lisboa nos dias seguintes.De TGV, seriam 4 horas de Bruxelas a Lisboa, com paragens em Paris e Madrid, com ele e Diógenes Durão, o delegado para Portugal, acertaria as verbas para o novo CICV de Sintra.

O concelho crescera, e chegara aos 700.000 habitantes, mais de metade de origem africana, e abrira um novo canal de TV, o Sintra Network, dirigido por Gustavo Facas, neto dum conhecido DJ dos anos 10. Concelho multicultural,o o vereador dos media, Simeon Pereira, era um descendente de romenos radicados no Mucifal.

Varela era dinâmico e audaz. Antigo rapper, eleito através do Facebook com 2/3 de “gostos”, tinha projectos para o concelho: a Cidade do Cinema abriria em 2048, bem como a Universidade Cristiano Ronaldo, em homenagem ao comendador, agora com 70 anos, proprietário do Hilton da Praia Grande e dum resort de montanha na Pena. No plano desportivo, a fusão de todos os clubes originara o Sintra SAD, presidido pelo antigo internacional Nani, depois da união, finalmente disputaria a I Liga.

Com elevada percentagem de desempregados, designados nas estatísticas como inactivos orgânicos, Varela criara um plano de reforma para quem tivesse frequentado pelo menos dez cursos de formação profissional. Mas o principal problema era a violência. Ganhara as eleições com a promessa de legalizar a criminalidade urbana, desde que não se ultrapassassem cinco roubos por esticão e três assaltos por ano, considerados falta leve no cadastro digital. Apesar disso, todas as noites havia desacatos no metro, em Mem Martins, obrigando à intervenção da Força Ninja, recrutada entre os veteranos da guerra de 2036 contra a Coreia do Norte, onde Sintra participara com a Divisão Queijada, integrada no Exército Europeu.

O telemóvel ligou. Simeon anunciava que o busto do escritor Miguel Real estava pronto para inaugurar, na Volta do Duche. Com mais de uma centena de e-books editados, era uma referência de Sintra, em 2019 ganhara o Nobel da Literatura. Ali ficaria, ao lado do Memorial à Hecatombe de 2011, quando Portugal caíra às mãos da troika. Moradores da única freguesia de Sintra ali depositavam flores com frequência, exorcizando esses anos de fome e incerteza, quando muita população perdeu o emprego, e sobreviveu com o apoio humanitário do Haiti.

Passados os anos, as coisas mexiam de novo, com Varela, Sintra voltava a ser cool. Desde os anos vinte que se apostava nas indústrias criativas de base tecnológica, e em empresas startup, em Morelena e Negrais. Os call centers com videoconferência, os transgénicos de estufa, a par de fábricas de carros a biodiesel, foram a base da retoma nos anos 20. Doces tradicionais como a queijada ou o travesseiro haviam desaparecido, substituídos por uma versão light sem açúcar, no quadro do plano de combate à obesidade, que igualmente banira o courato, o hambúrguer e o ice tea. Apostara-se no teletrabalho e na privatização dos serviços: o urbanismo era agora gerido por uma consultora baseada em Macau, as obras municipais pelo consórcio Aguiar e Morais, franchisado duma firma de Taiwan, apenas restando alguns funcionários em permanência, ganhando 300 yuans por mês (o yuan, moeda chinesa, era agora a moeda mundial, depois do estoiro do euro em 2018, após a intervenção da troika na Alemanha). Até a justiça fora privatizada, e entregue a uma holding de magistrados, a Isaltino e Associados, com sede nas ilhas Caimão e escritório em Lourel Oeste, a nova sede da comarca.

Após a reunião com Zibrinski, finalmente Sintra teria um CICV-Centro Integrado para a Conservação da Vida, algo a que antes chamavam hospital, uma empresa de saúde onde os doentes comprariam quarto e assistência em time-share, podendo trespassá-lo, após o tratamento e prévia liquidação de impostos. O acesso seria permitido após um chip do genoma confirmar a doença e a situação fiscal do paciente, gratuito para todos que se tivessem reformado aos noventa anos e provassem viver em casa dos pais. Em 2060, finalmente terminaria a revisão do PDM, depois de 70 anos em análise, a torre biónica da Adraga, com 1000m de altura e dez pisos só para marisqueiras, enfim ficaria pronta. Então, sim, o Admirável Mundo Novo chegaria a Sintra, pelas providenciais mãos de Djaló, e longe ficaria a memória dos terríveis anos 10, dos acampamentos de desalojados em Campo Raso, vítimas do furacão Gaspar, e da Grande Guerra 2015-2018, entre inspectores das Finanças e milícias da Resistência.

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