sexta-feira, 1 de maio de 2015

Uma gaivota voava, voava




-O Povo está! Com o MFA! -Estefânia abaixo, a multidão gritava em uníssono naquele 1º de Maio, ainda mal refeita dos acontecimentos dos dias anteriores. Coisa nunca vista em Sintra, mesmo pelos antigos, as pessoas desfilavam de braço dado, como família reencontrada, desfraldando faixas gigantes e apregoando a palavra liberdade, como se houvesse que gritar para que todos ouvissem.



Eufórica, Susana esperava junto à Farmácia Simões, um cravo vermelho na lapela, a alegria de criança com brinquedo novo, João vinha no cortejo, com as personalidades de Sintra à cabeça e militares à mistura. O doutor Sargo, velho republicano e advogado com residência fixa em Sintra, desde que nos anos trinta participara na revolta da Madeira, parecia uma criança, abraçado aos amigos, já falara com o Salgado Zenha, a quem a Junta de Salvação Nacional convidara para o novo Governo. Aqui e ali, descrentes profetas da desgraça assustavam com os perigos do comunismo. O Quintas, fiscal da Câmara e salazarista convicto, que três dias antes do golpe estivera num almoço da PIDE em Queluz, agoirava com os riscos da anarquia, o Spínola estava na mão dos capitães, instigava, fora dinheiro o que os movera, depois de orientados com as comissões em África.



O desfile, que teve início na Vila Velha e seguiu Volta do Duche fora, terminando na Portela, foi uma inesquecível procissão da democracia, liturgia da nova liberdade, com crentes e conversos celebrando o dia redentor. João, de sorriso aberto e a vasta cabeleira ao vento, chamou por Susana à passagem pela Farmácia Simões, que correu para ele rompendo pela multidão, beijando-o, e seguindo no cortejo. Dois meses depois casariam, sortuda, já tinha emprego como telefonista no serviço de PBX que iria abrir em breve.



Ao passar pelo Capote, o doutor Sargo avistou o José Alfredo na conversa com o Cortez Pinto e o Lacerda Tavares, e acenou-lhes, com olhar cúmplice e um sorriso largo:



-Viva Portugal! -gritou, qual general romano entrando em Roma, depois da conquista da Gália.



-Viva! –responderam em uníssono, com o Zé Alfredo a orquestrar, os olhos brilharam por trás dos óculos de massa.



De um carro partiam canções antes só trauteadas em surdina, agora consagrados hinos. Fanhais, Adriano, a marcha do MFA. A democracia ganhava ícones, e os novos sons de Portugal chegavam a uma Sintra mais dada a passeios pela Vila Velha que a manifestações de rua. Mal sonhava o doutor Forjaz, que com pompa e circunstância três meses antes recebera Moreira Baptista, ministro do Interior e antigo presidente da Câmara, que pouco tempo decorrido o Portugal do “a bem da Nação” seria arquivado numa prateleira da História.



Com o 25 de Abril, foi designada uma Comissão Administrativa presidida por José Alfredo, com Cortez Pinto, Álvaro de Carvalho e Lino Paulo entre outros, período conturbado, que culminou no afastamento do grande Zé em 1976. Teimoso, ainda conseguiu inaugurar a estátua a D. Fernando no Ramalhão, e inumar as cinzas de Ferreira de Castro na serra. Era o mínimo. As autárquicas de 1976 valeram a Câmara ao PS, e a presidência a Júlio Baptista dos Santos. Passado a embriaguez, o país construía a normalidade.



Recentemente reformada da Portugal Telecom, e passeando com a neta, depois do lanche no Tirol, Susana deu por si assaltada por esses sons e memórias já distantes. O povo, unido, jamais será vencido! Cavernoso, lembrou-lhe cabelos compridos e calças à boca-de-sino. -Tão ridículos que nós éramos! –pensou, melancólica.



-Oh avó, andas ou não andas? -questionou a pequena, puxando-lhe o braço.



Subitamente desperta, apressou-se, o 441 para Fontanelas estava quase a passar.

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