domingo, 30 de novembro de 2014

Socráticos


Faça chuva ou faça sol, há dez anos que os dois professores, já aposentados,rotineiramente se encontram para a bica e a habitual tertúlia no café do Leónidas. Horácio Sarzedas, dado à elucubração e debate, invariavelmente puxando do seu cachimbo e fazendo as palavras cruzadas, e Jorge Pimpão, antigo professor de Desenho mais atento à pagina dos mexericos e fait-divers, cobiçando o poster central  dos jornais de fim de semana.
Pela manhã  de domingo, lá veio mais uma bica  cheia para o Pimpão, e um café simples para o Horácio, e o Pimpão abriu as hostilidades:
-Então diz-me lá,meu caro, que estás tu a achar do Sócrates?
-Eh pá, o Sócrates quanto a mim  ainda estou a estudá-lo. Acho que não valoriza muito os sentimentos, é mais pelas ideias, embora ache que aí não se deve levar muito à letra. - sentenciou o Horácio-O que eu acho é que num primeiro momento ele leva os interlocutores a pôr em causa as suas próprias concepções acerca dos assuntos; depois, conduz-los a uma nova perspectiva acerca do tema em questão. Daí que perante o questionamento das pessoas, o Sócrates  questiona os seus preconceitos acerca dos assuntos, conduzindo a novas ideias acerca do tema em discussão, as dele- perorou,ufano,baforada do cachimbo sala fora, que no Leónidas pode-se fumar.
-Mas as  explicações  dele deixam-me muito a desejar, Horácio, pelo que leio…
-Acredita, Jorge, a minha leitura é a seguinte: as crenças do Sócrates, em comparação com os seus antecessores e correlegionários são difíceis de discernir, ele sempre foi moral e intelectualmente diferente de outros do seu tempo. Vê bem, quando foi acusado na praça pública, usou os seus métodos para demonstrar as posições erradas dos seus detractores. Acha  do que li dele que sempre acreditou que recebeu uma missão especial  ou divina para prosseguir a sua obra.
-Lá isso é verdade: ele acredita, quanto a mim que a excelência moral é uma questão de inspiração e não de parentesco ou compadrio. Isso talvez tenha sido a causa de não ter se importado muito com o futuro dos seus concidadãos- acrescentou o Pimpão, passando os olhos pela foto da Eva Longoria no jornal, de página inteira.
-A intenção dele era levar as pessoas a sentirem-se ignorantes de tanto perguntar, problematizando sobre conceitos em que as pessoas tinham dogmas.- continuou  Horácio, professoral -Aliás, de tanto questionar muita gente, sobretudo os supostos sábios, começou a ganhar inimigos. Sócrates sempre acreditou  que até ao relacionar-se com o parlamento  estaria a ser hipócrita.
-Mas isso não fez dele um déspota antidemocrático?
-A minha leitura-continuou, refastelando-se agora na cadeira- é a de que ele abandonou a preocupação em explicar-se e concentrou-se  nos problemas concretos. No entanto, envolveu-se em polémicas profundas, pois enquanto os opositores sempre procuraram fazer polémica com as suas posições sobre o bem e a justiça sempre trabalhou com dados, a partir dos dados empíricos, sem se preocupar com a investigação das coisas, da justiça ou do bem e a partir da qual a própria realidade pudesse ser avaliada.
-Ainda se estivesse bem rodeado….
-E estava, era vasto o grupo de discípulos e amigos,Jorge, vê bem, o Platão,o  Alcibíades, Xenofonte…
-O quê?- sorrindo, Pimpão atalhou agora o seu inspirado e tagarela interlocutor. –Mas não é desse Sócrates que estou a falar é do antigo primeiro-ministro,o José, o do Magalhães e do TGV!- e largou uma gargalhada, puxando da carteira para pagar e ir até casa, para o almoço.
Horácio parecia agora irritado por lhe terem interrompido o discurso e levantou-se para ir até ao almoço, trivialidades de política doméstica não eram consigo, antes  reler a República de Platão na esplanada do Angra ao fim da tarde. Já à porta, o Pimpão ainda ironizou:
-Cuidado com o almoço, Horácio, em vez dum tinto de Colares não bebas alguma cicuta por engano, como o outro,é mau para as hemorróidas! E saiu a almoçar. O Leónidas coçando a orelha  veio do balcão  levantar a mesa e ainda comentou com a velha Alice,que terminava o chá preto, achando-os "apanhados" do clima:
-Isto há cada uma!...Digo-lhe uma coisa, amiga Alice, só sei que nada sei!!- desabafou,recolhendo o jornal e as chávenas.

sexta-feira, 21 de novembro de 2014

Noites do Quivuvi




No plateau do Quivuvi, 1988 chegava ao fim, e velhos amigos reencontravam-se para mais um copo de sábado, as habituais cuba libre até por volta das seis, quando a manhã raiasse e providencial, o João Padeiro, em Nafarros, vendesse pães com chouriço, para amenizar a ressaca, corridas que fossem todas as capelas.

Margarida envolvera-se com Bernardo durante o Verão, paixão de praia que prosseguiu no Outono, com idas a Lisboa, ao Nimas e ao Charlie Brown. Foi ao som do Lover Why, dos Century, que sob a bola de espelhos do Quivuvi deram o primeiro beijo, a Filipa e a Guida, amigas das noites, apadrinharam. Bernardo era empregado de mesa, o gato que todas as miúdas queriam. Cena de uma noite, repetiu-se nos sábados seguintes, e quando o Verão acabou, e voltou para Lisboa, Margarida inventou entrevistas de emprego em Sintra para se encontrarem na Adega das Caves, onde Bernardo trabalhava.

Pelo Natal, o corpo deu sinais. Suspeição primeiro, certeza depois, Margarida estava grávida. Alegria, e também medo, apoderaram-se dela. O doutor Armando e a D.Georgina eram de famílias tradicionais, seria um choque a filha solteira e grávida, para mais dum empregado de mesa. Apesar de tudo, as mentes não estavam tão abertas assim, e Bernardo ao saber censurou-a. Incauto, também não tomara providências, mas homem é homem, apesar das notícias sobre uma doença vinda da América, a SIDA, o impulso vencera a segurança. Aborto, nem pensar, a D.Georgina era católica, e filha dela não faria um desmancho, severo, o doutor Armando mandou chamá-los para uma conversa.

Antes, encontraram-se no Quivuvi, com os amigos, o Natal estava próximo e a casa a meio gás, debitando música dos Cheap Trick e Whigfield, apreensivos, cogitaram no melhor a fazer. Passada a surpresa, Bernardo até anuiu a ter o filho, o pior era o doutor Armando e os Vasconcelos de Alencar, olhando-os inquisitoriais e condenando-os ao desterro social. A barriga de Margarida começava a ganhar forma, qualquer aborto seria arriscado. Tocada uma música dos Delfins, precipitaram-se para a pista, de mão dada. Quando alguém nasce, nasce selvagem, cantaria Miguel Ângelo mais tarde, selvagem nasceria, se necessário fosse, o fruto daquela noite na Adraga. Os amigos apoiaram, tudo correria pelo melhor, e juntaram-se num brinde solidário. Ter a criança ou fugir, não havia saída. Despediram-se à porta dela, a Guida, depois de a deixar em casa, levaria o Bernardo ao Penedo, um beijo apaixonado coincidia com a última emissão da Rádio Cidade, suspensa por falta de licença.

O doutor Armando era director na Câmara de Lisboa. Assoberbado em trabalho, desde que ardera o Chiado, em Agosto, braço direito do presidente Abecassis, seria candidato na eleição seguinte e escândalos não vinham nada a calhar para o eleitorado do Restelo e da Lapa.

À hora marcada, Bernardo, de camisa lavada e com um penteado irreverente, que tanta miúda levara à certa, lá apareceu. Não fosse a farda do restaurante e até passaria por um deles, com o seu ar altivo e olho azul. Sem grandes sorrisos, Armando mandou-o sentar num sofá, a mulher e a filha atrás, em pé, e grave, puxou o assunto:

-Rapaz, lamentavelmente, vejo que apesar da idade, ainda não ganhaste juízo nesse corpo. Eu, na tua idade, já era pai da Margarida, mas tudo aos olhos de Deus, só assim se pode ser um chefe de família respeitado e um exemplo para os filhos. Já mediste bem a gravidade dos teus actos? Se eu quisesse, nunca mais tinhas emprego em lado nenhum!

-Doutor Armando, eu….

-Nem mais uma palavra. A minha filha terá essa criança, nesta família não se contraria a vontade de Deus, mas tens de assinar um papel a renunciar à paternidade, e jurar-me que nunca mais te aproximarás da Margarida!

-Pai! -insurgiu-se Margarida- pai, não estamos no século XIX!. Eu amo o Bernardo, e não vou deixar de o ver. Nós vamos casar!

-Vamos?...- Bernardo perdia o controlo dos acontecimentos, aceitara o filho, gostava de Margarida, mas sem dinheiro ou casa, aquela novela não tinha verba para ser produzida. Num ápice, teve uma reacção:

-Doutor Armando, eu amo a sua filha, e vou arranjar um emprego para poder casar com ela, creia-me. Também simpatizo com o seu partido, andei a colar cartazes em Sintra nas últimas legislativas…

Armando Alencar fez uma cara de espanto: Sim?...

-Sim, doutor Armando. Portugal tem de ser governado por um governo liberal, e acabar com o regabofe esquerdista que ia dando cabo do nosso país. Aprecio muito o seu trabalho!

Margarida e os pais calavam, surpresos. Após uns segundos, Armando mandou-o embora, e que voltasse três dias depois, à porta, as mãos dadas a Margarida deixavam em aberto o desfecho daquele filme.

No dia acordado, mais distendido, Armando colocou uma solução sobre a mesa: arranjaria a Bernardo um lugar na Câmara, a começar de imediato, e se estivessem de acordo, casariam em Colares no mês seguinte, enquanto a barriga mantivesse o segredo. Assim, todos ficariam contentes. No fim da reunião, um abraço correlegionário juntou sogro e genro, afinal, também Georgina casara de esperanças, haveria Margarida de descobrir mais tarde.

Dois anos depois, o jovem assessor do vereador Alencar, seu genro por sinal, jantava no Búzio com a família, a pequena Matilde já começava a andar e tocava no aquário das lagostas, divertida. Velhos amigos a caminho do Quivuvi, vendo-os pela vidraça, convidaram para uma bebida, não mais haviam estado juntos depois do casamento. Pais, e com responsabilidades, declinaram, entreolhando-se e dando as mãos por baixo da mesa, recordando o Lover Why, que numa noite de Verão lhes mudara a vida. Oportunamente.

quarta-feira, 19 de novembro de 2014

Aquele 19 de Novembro


Eram seis da manhã quando Luís Filipe chegou da Concha, toda a noite curtira com a Ângela. Toldado por cubas libres e pelo som dos Duran Duran, depois de a deixar em casa, atirou-se para cima da cama, na vidraça a chuva flagelava. Sabia bem o remanso do edredon a ouvir chover lá fora, as coisas prometiam, no dia seguinte tomariam café no Bibió. Até ao meio-dia pareceu um lapso de segundos, até que a Miquelina o acordou, a senhora queria que o menino almoçasse com o senhor engenheiro, era o seu aniversário.

Enfiada uma T-Shirt dos Ramones, desceu para a sala, onde o Crispim, o velho caseiro, chegava assolapado para falar ao pai. Alheio, Luís Filipe trincou uma maçã, mais uma derrota do Sintrense, pensou, o velho era ferrenho e fora jogador em novo:

-Ui senhor engenheiro, nem queira saber! O rio subiu mais de três metros! Em Colares, até os tonéis do ramisco andam a boiar cá fora, o Cantinho e o bananeiro, está tudo debaixo de água!

O engenheiro pasmava:

-Coisa estranha, Crispim, aqui choveu muito, mas nada do outro mundo. Destes por alguma coisa, Mafalda? -sondou junto da esposa, que aquecia o leite na cozinha, enquanto a Miquelina não chegasse com opão.

-Não, nada de especial. Só se o teu filho deu por algo, andou na vadiagem! –respondeu D. Mafalda virando-se para Luís, ainda rameloso, chovera mas nada demais, eram uns exagerados. Chegada sem o pão, que não conseguiu lá chegar, a Miquelina arfava, com o saco na mão:

-Benza-o Deus, que coisa nunca vista! O meu primo Júlio, que mora ao pé do rio, em Galamares, ficou sem nada! Até o frigorífico apareceu a boiar em Colares, ao pé do Grémio! Isto quando Deus quer!..

Reparando bem, a luz fraquejava, e não tardou em faltar pelo resto do dia, o jantar de anos estava estragado, a tia Glória telefonava a dizer que de Sintra para baixo ninguém passava. Maroto, o Crispim confidenciou ao engenheiro:

-Parece que a minha prima Micas quando veio a chuvada grande estava enrolada com o Noel, o marido veio a correr saber se ela estava bem e apanhou-os na cama, com a cheia não se pôde escapulir. Nem quero pensar a sova que a magana vai levar! -soprou, solidário com o primo, D. Mafalda fez-se desentendida, nunca fora de dar confiança à criadagem.

Luís decidiu ir ver os estragos. Descendo de bicicleta do pinhal de Janas ao Mucifal, uma massa de água suja e detritos cobria toda a várzea. Entre maçãs e damascos pululavam  fogões, mesas, roupa e detritos, até os carros dos bombeiros estavam alagados. Passando o Cantinho com água pela cintura, quis ir ver o mar à Praia Grande, mas a ponte ruíra e só por Almoçageme se chegava. No Penedo, em casa de Ângela, nada sucedera, porém, as árvores caídas denunciavam a revoada, um rádio a pilhas dava nota de grandes estragos em Sintra. No Jamor e Ribeira das Jardas, a água galgara as linhas de água, castigando as construções em leito de cheia.

Com o passar do dia, a coisa adensava:os galináceos da Ermelinda afogados, a Jacinta sem casa, até a cama fora na enxurrada, a paróquia acolhia desalojados, dando-lhes leite e cobertores. Cancelada a festa de anos, o engenheiro e a mulher foram ajudar os vizinhos.

Chorosa, recolheram a Jacinta e os dois pequenos, uns pijamas de Luís Filipe, apesar de grandes, refrearam o frio e o terror espelhado nas caras. Sem luz, ricos e pobres carpiam as mágoas de quem nada pode, fogo ou água, dos quais Sintra tem regular visita. Antes que o dia virasse no calendário, Luís Filipe, já com a ressaca curada, puxou do isqueiro, e, juntando todos na cozinha à luz de velas, propôs que cantassem os parabéns. Com chuva ou sem ela, eram os anos do pai:

-Parabéns, velho! -saudou, dando-lhe um beijo na face, para ele, mais um aniversário, para muitos um dia que não queriam repetir. Aos poucos, o rio acalmava, e recolhia das margens, após a fúria, era tempo de reconstruir.

quinta-feira, 13 de novembro de 2014

O Guardião do Éden


O cavalo internava-se na mata, provocando um restolhar na terra húmida e fértil, à sombra dos penhascos do Éden verdejante. O cheiro inebriante da floresta entorpecia os sentidos, sem pressa, o cavaleiro absorvia-o, bálsamo da alma e revigorante do corpo.

Carlos Carvalho, regente florestal de Sintra, observava as suas plantas e árvores, sentinela  do génesis, jardineiro da Vida, cavalgando pela vasta propriedade, enquanto no lago um pato deslizava pela água fresca, qual príncipe esperando o desfazer dum encanto. Muitos anos tinham passado desde que pela primeira vez ali chegara, as araucárias eram agora vetustas e portentosas, regadas por muitas chuvas e invernos, e sempre miraculosamente despertas do letárgico sono a cada primavera redentora. No Éden de Carvalho, “o Carvalho da Pena” como, agradecidos, os patrícios o tratavam, a flora atingia o clímax fecundo. Havia criptomérias do Japão, fetos da Nova Zelândia, cedros do Líbano, araucárias do Brasil, até tuias da América, tudo preciosa herança do velho rei D. Fernando. Carvalho recebeu o legado, e tratou-o como seu, pai extremoso, enfermeiro atempado, vigilante do paraíso, antes jovem jardim de rosas e camélias e agora garbosa floresta de vetustos carvalhos, como ele, o Carvalho, incontornável, rosto tímido atrás do vasto bigode, sem pressa e introspectivo. Sentia a ampulheta do tempo esgotar-se, e cada passeio era agora de despedida. Sabia a idade de cada uma das suas protegidas, que lhe retribuíam, agradecidas, com cores para todas as estações, em anual milagre da clorofila. Cada abate que fortuito se impusesse, fazia-o pedindo perdão, breve outra planta ocuparia esse lugar.

Cavalgava e lembrava a velha condessa, e como já perto da morte lhe jurara cuidar do Éden. Logo se lhe juntaria, o eucaliptus obliqua, lacre do amor dela e de D. Fernando, plantado no dia do seu casamento, crescia garboso e diariamente com ele falava como se fosse um velho amigo.

Naquela manhã visitá-lo-ia o neto da condessa, Azevedo Gomes, como ele hortelão de milagres, sempre zelando para que o verde manto protegido não sucumbisse às labaredas do inferno que por vezes rondavam o Jardim. Azevedo Gomes aliara os seus conhecimentos silvícolas à aturada experiência de Carvalho, estudando a serra para um futuro livro. Lentamente, fazia a monografia do parque, o conhecimento escrito e o sabido em frutífera união. Encontraram-se na Fonte dos Passarinhos, ao fim da manhã, sob um sol outonal. Era um momento muitas vezes repetido, a romagem aos canteiros e condutas de água, conselhos sobre cortes e podas, ideias para repor espécies endémicas e repelir as infestantes. O dinheiro não abundava, e Carvalho, com poucos e generosos jardineiros, cuidava como seu um património que os responsáveis não acarinhavam.

-Sabe, senhor engenheiro -lamentou, enquanto caminhavam a pé –sinto que estou a ficar sem forças. Não sei o que vai ser disto depois. O Ministério…

Antes que concluísse, Azevedo Gomes, agarrou-lhe o braço, interrompendo-o:

-Ora, ora, amigo Carvalho, vão as araucárias crescer mais três metros e ainda você aí estará para as curvas. Quando a semente é boa, a árvore sai rija!

O Carvalho da Pena fixou os olhos mortiços no eucaliptus obliqua e suspirou, com ar cansado:

-Quando a minha hora chegar, gostava que fosse assim, de pé! -e abriu os braços, fazendo menção de abraçar o portentoso tronco, e com ele, toda uma vida a trote, à chuva e ao sol, pelas ravinas bordejadas de fetos, orientando os guardas, e zelando pelo “seu” parque. Azevedo Gomes pôs-lhe a mão no ombro, e em silêncio seguiram por um caminho de pedra. Uma pequena araucária, tombada e com apenas vinte centímetros ameaçava morrer, as mãos enrugadas do velho jardineiro logo a acondicionaram com terra, e um regador oportuno revigorou com água aquela promessa de vida.

-Carvalho, creia-me, se esperamos o que não vemos, com perseverança esperaremos. Este não é só o Parque da Pena. É o Parque do Carvalho da Pena!

Carvalho sorriu, pensativo, finda a visita, despediram-se. Não mais tornariam a ver-se. Carlos de Oliveira Carvalho, administrador florestal do Parque da Pena desde 1911, morreu pouco tempo depois. A pequena araucária, essa, mede já trinta metros, salva pela mão do Carvalho. Da Pena.

terça-feira, 11 de novembro de 2014

Triângulos



Erasmus na Hungria, para cursar Engenharia do Ambiente, era um desafio para Vanessa, uma mudança para Budapeste e novos amigos em perspetiva. Eufórica com a aventura magiar, chegou a Budapeste em Setembro.

A cidade era limpa e aristocrática, com os velhos edifícios da era dos Habsburgos marginando o plácido Danúbio, pontes pedonais e praças perfumadas de música, artistas de rua, diferente do subúrbio onde vivia. Os primeiros dias foram de descoberta, a impronunciável língua abafada pelos gulosos gundel palacsinta. A universidade funcionava num edifício clássico, em Erasmus com ela, um italiano, Matteo, e Ilse, uma sueca de trato fácil. Ao fim de uma semana eram já grandes amigos, a alegria esfuziante da jovem do Algueirão derrubava fronteiras e conquistava o leste.

Aí surgiu András. András Szabo, 19 anos, colega de turma e com ar franzino, das aulas aos passeios vespertinos pela Praça Vörösmarty, nasceu uma paixão e passaram a partilhar um apartamento perto da ilha Margarida. Nas horas vagas, András trabalhava no Karpátia, um restaurante perto da catedral de Buda, abrilhantado pelo som das czardas debitadas por nervosos violinos. À noite, ela esperava-o e ceavam juntos, e ao fim de semana, passeavam de bicicleta, por entre florestas pintalgadas de cavalos ou banhavam-se no Balaton, cristalino lago a sul, um copo de Tokay aquecia os corações e a cama, na noite fria da estepe. Portugal era cada vez mais só a recordação do sol e dos amigos, o Facebook amenizava as saudades e o futuro parecia despontar sorridente

Ao fim de dois meses, András começou a ausentar-se com frequência, a mãe viúva adoecera e tinha de lhe dar apoio em Esztergom. De início compreensiva, Vanessa entretinha-se nas ausências de András a estudar na biblioteca, onde Matteo, o italiano, surgia frequentemente. A alegria dele, anárquica e expansiva, contrastava com a postura eslava e marcial do magiar, e os risos de Vanessa passaram a ser mais francos com Matteo que com András. Um ambiente rotineiro e seco instalou-se então no apartamento, quando à noite voltava do Karpátia já só restavam beijos distantes, o cheiro a sültmalac da roupa dele suscitava agora enjoo a Vanessa.

A adrenalina do ménage a trois, mesclada com um desejo irreprimível, estimulou-lhe a volúpia de fêmea. András era o cérebro, Matteo o corpo. Até que Matteo sucedeu a András na babel do desejo. Certa noite, com András ausente em Esztergom, jantaram numa trattoria junto ao Kempinski. Moreno e atlético, Matteo transpirava virilidade, umas Dreher ao som dum cimbalon e logo o apartamento foi o destino, direto e sem apeadeiros, a jovem do Algueirão colecionava internacionalizações, trepidante nos seus dezanove anos.

Assim foram passando os dias e semanas. Em finais de Abril voltou a Portugal, de férias, apesar dos jantares com os amigos, era em Budapeste que estavam os pensamentos, mais com Matteo que com András, era uma gata dengosa com dois bichanos. Ao regressar, inexplicavelmente András deixara o apartamento e levara as suas coisas, na universidade ou no Karpátia ninguém o voltara a ver. Telefonou-lhe, perguntou por ele, desaparecera sem rasto.Liberto do rival, Matteo passou a acompanhá-la mais assiduamente e acabou mudando-se para o apartamento. Dois meses passaram, e András definitivamente ficou para trás, talvez estivesse em Esztergom com a mãe, esqueceu-o, contudo.

Num domingo de Junho foi a Visegrád passear com Matteo, o Danúbio deslizava entre colinas verdes, sobranceiro ao castelo, a paixão que vivia era aquilo que sempre almejara. Findo o passeio, Matteo foi aos lavabos, no castelo,demorando-se mais que o normal, Vanessa foi no seu encalce. Na casa de banho não estava, o castelo fechara entretanto. Contornava a barbacã quando descortinou no capim um vulto hirto e com um cachecol familiar: era Matteo, com um sabre espetado nas costas. Colado na testa, um papel branco com a frase “Com os cumprimentos do Karpátia”.