sábado, 1 de novembro de 2014

O Dia do Armagedeão



Amanhecia o dia 1 de Novembro e Sintra celebrava a festa de Todos os Santos. Sábado sereno, sol claro e céu nimbado, findava o ano de 1755 e reinava tranquilo D. José. Cadenciados, os fiéis afluíam à missa das nove em S. Martinho, celebraria D. Raimundo Miranda Henriques. O juiz dos órfãos, o vigário da vara, o capitão-mor e todas as famílias de Sintra, enchiam a nave em dia grande no calendário litúrgico. Chamativo, na Torre da Vila, o sino repicava. Francisca Aires, a filha, Tomásia, e Maria Lemos, viúva de Teodósio Santos, mesário da Santa Casa, foram as primeiras a chegar, vestidas a condizer com a solenidade, recordando os que já estavam no descanso do Senhor.

-Que dia bonito! Nem parece Novembro! -comentou Tomásia para a mãe, dezassete anos incompletos e cabelo cor de azeitona.

-É o Verão de S. Martinho, minha filha! –lembrou a mãe, com a mantilha cobrindo os cabelos, também o marido se finara já.

D. Raimundo, há vinte anos pároco de Sintra, nomeado pelo cardeal D. José, uma vez mais cumpria o ritual dos sagrados mortos, o negro, farda da dor, por longos meses lembraria os que haviam partido para junto de Deus, só a esperança na redenção ajudava a aliviar a perda. Em todas as casas havia um falecido a lembrar, uma novena para rezar, sepulturas para cuidar, vivos e mortos no temor a Deus.

-O Senhor esteja convosco! –ia cumprimentando à porta da igreja, fazendo o sinal da cruz, a muitos casara e batizara os filhos.

Todos acomodados, deu-se início à missa, num latim impercetível. Penitentes ajoelhados prometiam arrependimento, mea culpa, o esconjuro dos pecados. Pouco depois das nove e meia, num trepidar contínuo e incontrolável, a terra começou a tremer. Perorava D. Raimundo a homilia, quando se deu um abalo forte e tombou o teto, logo sucumbindo vinte e sete fiéis debaixo da nave central. Atingido por uma viga do altar-mor, D. Raimundo tombou com o peito trespassado, sendo o altar consumido pelas velas. Os que puderam, fugiram, gritando, só parte da abside se aguentou. Ao segundo minuto, os edifícios começaram a cair, arruinados, e um cenário apocalíptico e de fumo denso cobriu toda a vila. A igreja da Misericórdia ficou em escombros, a ermida de S. Sebastião em ruínas, na Alpendrada, colarejas em pânico rezavam, lancinante, um cão uivava no pelourinho. Caída na igreja, Francisca Aires sangrava, um lenho pontiagudo quase lhe decepara a cabeça, a seu lado Tomásia jazia morta, com o missal na mão e um santo em cacos junto ao peito.

Duraram os abalos seis para sete minutos, interrompidos  por breves intervalos. Em todo este tempo um estrondo subterrâneo, qual trovão, soou ao longe. Escureceu-se o sol e exalações sulfúreas empestaram o ar. Por todo o lado se abriram fendas na terra, qual Inferno abocanhando a Terra, para que Belzebu a todos levasse para o mundo das trevas. Na igreja, criados de Maria Aires lograram encontrá-la viva, descomposta a levaram para a casa no Arraçário, ou o que dela sobrara: animais mortos, pipas de vinho vertendo, viva entre mortos e morta para a vida. Ao longe, o mar encapelado galgava as arribas, desmoronando-as como grãos de areia.

Muitos outros, em casa  e nas ruas foram vítimas da gadanha mortal num inesperado armagedeão, gritos e clamores sucederam-se, num carpir lancinante e impotente. Ninguém cuidava senão de se salvar e pedir a salvação da alma. Trinta e seis mortos se contaram na Vila, emboscados nas missas de finados, o fogo propagou-se à R. da Pendôa, cinzas e fumo toldaram o Paço, de onde a guarnição desertou, deixando os cavalos mortos no estábulo. Em menos de uma hora, terra e mar uniam-se contra os indefesos mortais, sem o adivinhar, as missas de finados viravam de corpo presente, no imenso cemitério em que a Vila se tornou. Era o verão de S. Martinho.

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