Eram seis da
manhã quando Luís Filipe chegou da Concha, toda a noite curtira com a
Ângela. Toldado por cubas libres e pelo som dos Duran Duran,
depois de a deixar em casa, atirou-se para cima da cama, na vidraça a chuva
flagelava. Sabia bem o remanso do edredon a ouvir chover lá fora, as
coisas prometiam, no dia seguinte tomariam café no Bibió. Até ao meio-dia pareceu um lapso de segundos, até que a
Miquelina o acordou, a senhora queria que o menino almoçasse com o senhor
engenheiro, era o seu aniversário.
Enfiada uma
T-Shirt dos Ramones, desceu para a sala, onde o Crispim, o velho
caseiro, chegava assolapado para falar ao pai. Alheio, Luís Filipe trincou uma
maçã, mais uma derrota do Sintrense, pensou, o velho era ferrenho e fora
jogador em novo:
-Ui
senhor engenheiro, nem queira saber! O rio subiu mais de três metros! Em
Colares, até os tonéis do ramisco andam a boiar cá fora, o Cantinho e o
bananeiro, está tudo debaixo de água!
O engenheiro
pasmava:
-Coisa
estranha, Crispim, aqui choveu muito, mas nada do outro mundo. Destes por
alguma coisa, Mafalda? -sondou junto da esposa, que aquecia o leite na
cozinha, enquanto a Miquelina não chegasse com opão.
-Não,
nada de especial. Só se o teu filho deu por algo, andou na vadiagem! –respondeu
D. Mafalda virando-se para Luís, ainda rameloso, chovera mas nada demais, eram
uns exagerados. Chegada sem o pão, que não conseguiu lá chegar, a Miquelina
arfava, com o saco na mão:
-Benza-o
Deus, que coisa nunca vista! O meu primo Júlio, que mora ao pé do rio, em
Galamares, ficou sem nada! Até o frigorífico apareceu a boiar em Colares, ao pé
do Grémio! Isto quando Deus quer!..
Reparando
bem, a luz fraquejava, e não tardou em faltar pelo resto do dia, o jantar de
anos estava estragado, a tia Glória telefonava a dizer que de Sintra para baixo
ninguém passava. Maroto, o Crispim confidenciou ao engenheiro:
-Parece
que a minha prima Micas quando veio a chuvada grande estava enrolada com o
Noel, o marido veio a correr saber se ela estava bem e apanhou-os na cama, com
a cheia não se pôde escapulir. Nem quero pensar a sova que a magana vai levar!
-soprou, solidário com o primo, D. Mafalda fez-se desentendida, nunca fora de
dar confiança à criadagem.
Luís decidiu
ir ver os estragos. Descendo de bicicleta do pinhal de Janas ao Mucifal, uma
massa de água suja e detritos cobria toda a várzea. Entre maçãs e damascos pululavam fogões, mesas, roupa e detritos, até os
carros dos bombeiros estavam alagados. Passando o Cantinho com água pela
cintura, quis ir ver o mar à Praia Grande, mas a ponte ruíra e só por
Almoçageme se chegava. No Penedo, em casa de Ângela, nada sucedera, porém, as
árvores caídas denunciavam a revoada, um rádio a pilhas dava nota de grandes
estragos em Sintra. No Jamor e Ribeira das Jardas, a água galgara as linhas de
água, castigando as construções em leito de cheia.
Com o passar
do dia, a coisa adensava:os galináceos da Ermelinda afogados, a Jacinta sem
casa, até a cama fora na enxurrada, a paróquia acolhia desalojados, dando-lhes
leite e cobertores. Cancelada a festa de anos, o engenheiro e a mulher foram
ajudar os vizinhos.
Chorosa,
recolheram a Jacinta e os dois pequenos, uns pijamas de Luís Filipe, apesar de
grandes, refrearam o frio e o terror espelhado nas caras. Sem luz, ricos e
pobres carpiam as mágoas de quem nada pode, fogo ou água, dos quais Sintra tem
regular visita. Antes que o dia virasse no calendário, Luís Filipe, já com a
ressaca curada, puxou do isqueiro, e, juntando todos na cozinha à luz de velas,
propôs que cantassem os parabéns. Com chuva ou sem ela, eram os anos do pai:
-Parabéns,
velho! -saudou, dando-lhe um beijo na face, para ele, mais um aniversário,
para muitos um dia que não queriam repetir. Aos poucos, o rio acalmava, e
recolhia das margens, após a fúria, era tempo de reconstruir.
Sem comentários:
Enviar um comentário