segunda-feira, 3 de novembro de 2014

Tesouro no mar de Andaman




Mar de Andaman, oeste de Sumatra, mais um dia de buscas subaquáticas findava e Robert Benning atacava um revigorante gin tonic no convés do Octopus, deitando um olhar sobre o mapa que  Dionísio Garnel (Dick, como lhe chamava) elaborara. Pelos cálculos de Garnel, arqueólogo subaquático, ali estariam os destroços do Flor de la Mar.Benning participara já em várias expedições com a Secret Seas, a empresa de buscas que fundara na Austrália, o valioso tesouro levou-o a aceitar o projeto de Garnel, que chegara a Malaca um mês antes, um almoço no Portuguese Settlement selara a colaboração.

Na noite de 20 de Novembro de 1511, quando navegava para a Índia levando o espólio da conquista de Malaca, uma tempestade afundara o Flor de la Mar, onde seguia Afonso de Albuquerque, fazendo numerosas vítimas e obrigando Albuquerque a usar uma jangada improvisada. Perdeu-se então o saque da conquista de Malaca, presentes do rei do Sião, bem como estátuas em ouro, cofres com diamantes e rubis, moedas portuguesas, árabes e chinesas. Pelos dados de Garnel, apenas dois dias após passar o estreito de Malaca, a frota foi atingida por uma tempestade, e a nau encalhou em Tenga Reef, no nordeste de Sumatra, sendo despedaçada pelas ondas. Dos quatrocentos homens, apenas três terão sobrevivido.

Robert e Garnel haviam-se conhecido num chat de mergulho subaquático, a troca de informações levou-os a acertar a expedição a partir de Malaca, um vindo de Perth, o outro de Lisboa. Pior era o governo da Malásia, cujas leis proibiam a retenção de tesouros e a puniam como pirataria, não se poderia facilitar, desconfiada,a guarda costeira já uma vez visitara o Octopus.

Robert fazia os mergulhos, enquanto a bordo Garnel monitorizava e dois indonésios tripulavam. Mergulhador exímio, conhecia bem aqueles mares, as raias e os peixes-pedra obrigavam a atenção redobrada, pois o veneno da barbatana era perigoso para os incautos. Fazia uma semana que mergulhava e a zona de busca ia apertando, pela descrição de João de Barros, nas Décadas da Ásia só podia ser ali. Até que finalmente a visão de um amontoado de madeiras carcomidas e uma âncora enferrujada no fundo do mar deram esperança ao australiano. Eufórico e nadando entre os destroços, recolheu um pequeno baú e emergiu ao encontro de Garnel:

-Então? Que me dizes Dick? Poderá ser o Flor de la Mar?

O arqueólogo analisou, minucioso, as moedas eram portuguesas efectivamente:

-Há duas espécies aqui: vinténs, do tempo do nosso rei João II, de prata, e justos em ouro. Vês o desenho? Tem o rei sentado no trono, empunhando a espada da justiça. É desse tempo, e é portuguesa, com toda a certeza. Mas há aqui uma ainda mais rara: o índio de prata, uma moeda que evoca a descoberta do caminho marítimo para a Índia. Dum lado, tem o escudo real, do outro, a cruz de Cristo. Uma coisa é certa: os destroços são de um barco português!

Interrompendo-os, um dos tripulantes alertava para a aproximação de uma lancha da guarda malaia pelo que de imediato as moedas foram escondidas dentro de um balde com água. Exibida a documentação, estava tudo em ordem, para todos os efeitos, eram turistas à pesca nos mares do Sul. Preparavam-se os guardas para regressar à lancha quando uma voz agitada e repetitiva soou no rádio dum deles: Mayday! Mayday! A cara subitamente empalidecida dos malaios deixou-os preocupados, o mar parecia cavado e um silêncio profundo transmitia uma falsa sensação de calma. Os guardas entreolharam-se e gritaram frases imperceptíveis:

-Mendekati gelombang raksasa! Aproxima-se uma onda gigante! O Centro de Tsunamis de Jakarta está a  lançar um alerta para  a região do Pacífico! E estamos a trinta milhas da costa!

Os guardas costeiros correram para a lancha, quais peixes voadores, e Robert e Garnel apressaram-se a levantar âncora, um vento sussurrante antecedia uma onda gigante a menos de vinte milhas. Nem dez minutos eram decorridos quando uma vaga de sete metros vinda de sul enrolou o Octopus, engolindo-o, e devolvendo o balde com as moedas às profundezas. Com um vintém na mão, Dionísio Garnel ainda tentava colocar o salva vidas quando a água invasora os abocanhou, arrastando para o fundo. Era 26 de Dezembro de 2004, e Dionísio e Robert foram nesse dia duas das vítimas do tsunami asiático. Desperto por instantes, o Flor de la Mar continua esperando, no fundo do mar de Andaman.

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