O cavalo
internava-se na mata, provocando um restolhar na terra húmida e fértil, à
sombra dos penhascos do Éden verdejante. O cheiro inebriante da floresta
entorpecia os sentidos, sem pressa, o cavaleiro absorvia-o, bálsamo da alma e
revigorante do corpo.
Carlos
Carvalho, regente florestal de Sintra, observava as suas plantas e árvores,
sentinela do génesis, jardineiro da Vida, cavalgando pela vasta
propriedade, enquanto no lago um pato deslizava pela água fresca, qual príncipe
esperando o desfazer dum encanto. Muitos anos tinham passado desde que pela
primeira vez ali chegara, as araucárias eram agora vetustas e portentosas,
regadas por muitas chuvas e invernos, e sempre miraculosamente despertas do
letárgico sono a cada primavera redentora. No Éden de Carvalho, “o
Carvalho da Pena” como, agradecidos, os patrícios o tratavam, a flora atingia o
clímax fecundo. Havia criptomérias do Japão, fetos da Nova Zelândia, cedros do
Líbano, araucárias do Brasil, até tuias da América, tudo preciosa herança do
velho rei D. Fernando. Carvalho recebeu o legado, e tratou-o como seu, pai
extremoso, enfermeiro atempado, vigilante do paraíso, antes jovem jardim de
rosas e camélias e agora garbosa floresta de vetustos carvalhos, como ele, o
Carvalho, incontornável, rosto tímido atrás do vasto bigode, sem pressa e
introspectivo. Sentia a ampulheta do tempo esgotar-se, e cada passeio era agora
de despedida. Sabia a idade de cada uma das suas protegidas, que lhe
retribuíam, agradecidas, com cores para todas as estações, em anual milagre da
clorofila. Cada abate que fortuito se impusesse, fazia-o pedindo perdão, breve
outra planta ocuparia esse lugar.
Cavalgava e
lembrava a velha condessa, e como já perto da morte lhe jurara cuidar do Éden.
Logo se lhe juntaria, o eucaliptus obliqua, lacre do amor dela e de D.
Fernando, plantado no dia do seu casamento, crescia garboso e diariamente com
ele falava como se fosse um velho amigo.
Naquela
manhã visitá-lo-ia o neto da condessa, Azevedo Gomes, como ele hortelão de
milagres, sempre zelando para que o verde manto protegido não sucumbisse às
labaredas do inferno que por vezes rondavam o Jardim. Azevedo Gomes aliara os
seus conhecimentos silvícolas à aturada experiência de Carvalho, estudando a
serra para um futuro livro. Lentamente, fazia a monografia do parque, o
conhecimento escrito e o sabido em frutífera união. Encontraram-se na Fonte dos
Passarinhos, ao fim da manhã, sob um sol outonal. Era um momento muitas vezes
repetido, a romagem aos canteiros e condutas de água, conselhos sobre cortes e podas,
ideias para repor espécies endémicas e repelir as infestantes. O dinheiro não
abundava, e Carvalho, com poucos e generosos jardineiros, cuidava como seu um
património que os responsáveis não acarinhavam.
-Sabe,
senhor engenheiro -lamentou, enquanto caminhavam a pé –sinto que
estou a ficar sem forças. Não sei o que vai ser disto depois. O Ministério…
Antes que
concluísse, Azevedo Gomes, agarrou-lhe o braço, interrompendo-o:
-Ora,
ora, amigo Carvalho, vão as araucárias crescer mais três metros e ainda você aí
estará para as curvas. Quando a semente é boa, a árvore sai rija!
O Carvalho
da Pena fixou os olhos mortiços no eucaliptus obliqua e suspirou, com ar
cansado:
-Quando a
minha hora chegar, gostava que fosse assim, de pé! -e abriu os
braços, fazendo menção de abraçar o portentoso tronco, e com ele, toda uma vida
a trote, à chuva e ao sol, pelas ravinas bordejadas de fetos, orientando os
guardas, e zelando pelo “seu” parque. Azevedo Gomes pôs-lhe a mão no ombro, e
em silêncio seguiram por um caminho de pedra. Uma pequena araucária, tombada e
com apenas vinte centímetros ameaçava morrer, as mãos enrugadas do velho
jardineiro logo a acondicionaram com terra, e um regador oportuno revigorou com
água aquela promessa de vida.
-Carvalho,
creia-me, se esperamos o que não vemos, com perseverança esperaremos. Este não
é só o Parque da Pena. É o Parque do Carvalho da Pena!
Carvalho
sorriu, pensativo, finda a visita, despediram-se. Não mais tornariam a ver-se.
Carlos de Oliveira Carvalho, administrador florestal do Parque da Pena desde 1911,
morreu pouco tempo depois. A pequena araucária, essa, mede já trinta metros,
salva pela mão do Carvalho. Da Pena.
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