Faça
chuva ou faça sol, há dez anos que os dois professores, já aposentados,rotineiramente se encontram para a bica e a
habitual tertúlia no café do Leónidas.
Horácio Sarzedas, dado à elucubração e debate, invariavelmente puxando
do seu cachimbo e fazendo as palavras cruzadas, e Jorge Pimpão,
antigo professor de Desenho mais atento à pagina dos mexericos e fait-divers, cobiçando o poster central dos jornais de fim de semana.
Pela
manhã de domingo, lá veio mais uma bica cheia para o Pimpão, e um café
simples para o Horácio, e o Pimpão abriu as hostilidades:
-Então diz-me lá,meu caro, que estás tu a achar do Sócrates?
-Eh
pá, o Sócrates quanto a mim ainda estou a estudá-lo. Acho que não
valoriza muito os sentimentos, é mais pelas ideias, embora ache que aí
não se deve levar muito à letra. - sentenciou o Horácio-O que
eu acho é que num primeiro momento ele leva os interlocutores a pôr em
causa as suas próprias concepções acerca dos assuntos; depois,
conduz-los a uma nova perspectiva acerca do tema em questão. Daí que
perante o questionamento das pessoas, o Sócrates questiona os seus
preconceitos acerca dos assuntos, conduzindo a novas ideias acerca do
tema em discussão, as dele- perorou,ufano,baforada do cachimbo sala fora, que no Leónidas pode-se fumar.
-Mas as explicações dele deixam-me muito a desejar, Horácio, pelo que leio…
-Acredita,
Jorge, a minha leitura é a seguinte: as crenças do Sócrates, em
comparação com os seus antecessores e correlegionários são difíceis de
discernir, ele sempre foi moral e intelectualmente diferente de outros
do seu tempo. Vê bem, quando foi acusado na praça pública, usou os seus
métodos para demonstrar as posições erradas dos seus detractores. Acha
do que li dele que sempre acreditou que recebeu uma missão especial ou
divina para prosseguir a sua obra.
-Lá
isso é verdade: ele acredita, quanto a mim que a excelência moral é uma
questão de inspiração e não de parentesco ou compadrio. Isso talvez
tenha sido a causa de não ter se importado muito com o futuro dos seus concidadãos- acrescentou o Pimpão, passando os olhos pela foto da Eva Longoria no jornal, de página inteira.
-A
intenção dele era levar as pessoas a sentirem-se ignorantes de tanto
perguntar, problematizando sobre conceitos em que as pessoas tinham
dogmas.- continuou Horácio, professoral -Aliás, de tanto
questionar muita gente, sobretudo os supostos sábios, começou a ganhar
inimigos. Sócrates sempre acreditou que até ao relacionar-se com o
parlamento estaria a ser hipócrita.
-Mas isso não fez dele um déspota antidemocrático?
-A minha leitura-continuou, refastelando-se agora na cadeira-
é a de que ele abandonou a preocupação em explicar-se e concentrou-se
nos problemas concretos. No entanto, envolveu-se em polémicas
profundas, pois enquanto os opositores sempre procuraram fazer polémica
com as suas posições sobre o bem e a justiça sempre trabalhou com
dados, a partir dos dados empíricos, sem se preocupar com a investigação das coisas, da justiça ou do bem e a partir da qual a
própria realidade pudesse ser avaliada.
-Ainda se estivesse bem rodeado….
-E estava, era vasto o grupo de discípulos e amigos,Jorge, vê bem, o Platão,o Alcibíades, Xenofonte…
-O quê?- sorrindo, Pimpão atalhou agora o seu inspirado e tagarela interlocutor. –Mas não é desse Sócrates que estou a falar é do antigo primeiro-ministro,o José, o do Magalhães e do TGV!- e largou uma gargalhada, puxando da carteira para pagar e ir até casa, para o almoço.
Horácio parecia agora irritado por lhe terem interrompido o discurso e levantou-se para ir até ao almoço, trivialidades de
política doméstica não eram consigo, antes reler a República de Platão
na esplanada do Angra ao fim da tarde. Já à porta, o Pimpão ainda ironizou:
-Cuidado
com o almoço, Horácio, em vez dum tinto de Colares não bebas alguma
cicuta por engano, como o outro,é mau para as hemorróidas! E saiu a
almoçar. O Leónidas coçando a orelha veio do balcão levantar a mesa e
ainda comentou com a velha Alice,que terminava o chá preto, achando-os
"apanhados" do clima:
-Isto há cada uma!...Digo-lhe uma coisa, amiga Alice, só sei que nada sei!!- desabafou,recolhendo o jornal e as chávenas.
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