domingo, 7 de junho de 2015

Nomes na Agenda


Telefonar ao Rui, porque não? Fazia tempo que não se viam, o novo emprego afastara-o, a voragem dos dias ia deixando a amizade pelo caminho. Será que ainda há amizades e não só a necessidade de ter gente à volta, cultivando imagens e não pessoas de carne e osso? Filipe descrera já da verdadeira amizade, o silêncio de Rui era frustrante, as coisas apenas pareciam ter durado enquanto não partisse para melhor, talvez porque os vultos bons dos dias maus lembram a existência desses dias maus, mesmo quando neles houve amigos leais.

Filipe sempre estimara os amigos, dos dias bons e dos maus, acreditava que quando viessem os bons haveriam de celebrar, sobreviventes, sempre acreditara nisso. Mas não. Aquilo que para ele era amizade, para outros não passava de rotina, meros figurantes na espuma dos dias. Com namorada nova, Rui, fiel a outros amigos, não voltou a ligar, e apesar das juras de amizade, sumiu.

Sentado na esplanada da praia, Filipe saboreou o silêncio, esse sim, verdadeiro e só dele, cansado do mundo, e de ilusões. Envelhecia-lhe o corpo, e se sempre procurara manter o espírito jovem e crédulo, tinha de admitir que assim já não era. Começava a ver mal, ele que sempre se metera com os “caixa de óculos”, não distinguia já as letras do jornal. O álcool, antes libertador, era agora pesado, bebidas brancas nunca mais, que o fígado delator se queixava, as caixas de Ben-Uron antes a apodrecer no armário, tinham agora saída, logo chegaria a iníqua próstata, a vida a estreitar caminhos e a fechar portas, logo as farmácias substituiriam os bares, fornecendo bálsamo para o corpo, e anestesia para a alma.

O mar era uma coisa estranha. Poderoso, à falta de se poder domar, contempla-se, como que o querendo amaciar. Apático, Filipe olhou o horizonte e qual diaporama viu o seu passado em filme, reflectindo como nos seus quarenta e sete anos já vivera várias vidas, diferentes, sempre com novas histórias e amizades, logo encerradas em capítulos estanques. E ele, ingénuo, sempre voltando a dar o benefício à Vida, e esta a jogar às escondidas, trazendo personagens novas de geografias recentes. Idiota, nunca mais aprendia a acreditar em desacreditar das pessoas, com a limpidez da verdade escondida na intermitência da farsa.

Mirou o telemóvel, e correu a agenda com o cursor: o Rui, a Susana, o Beto, a Madalena, números dantes sinal de alegria, milhentas vezes tocados, eram agora um arquivo silencioso e morto, o Rui, que diariamente lhe ligava, até o seu número esquecera, melhor seria apagá-lo da agenda e virar a página.

Era um lamecha. Crescido nas festas de garagem e nas promessas de amanhãs cantando, tardio crente na amizade de tudo largar para acorrer aos “seus”, viu-se só. O mais perturbador é que se sentia estranhamente bem, couraçado de novas traições, ausente, mas presente para si, nunca como agora apreciava tanto a solidão, ele que em tempos a receara. Os da sua geração saltitavam do dentista para o centro de saúde, caseiros, e sem conversa, vencidos da vida e maçadores, neles revia a sua juventude, mas pouco lhe diziam, sombras nimbadas, mas etéreas, arquivadas no passado onde pertenciam, tesouro no baú. Aos mais recentes, agradava-lhe a juventude, os sonhos, o poder ser paternal e irmão mais velho, companheiro e protector. Tudo era efémero, porém, olhou em volta e tudo lhe pareceu fugaz, sem futuro, vencidos da vida e sem vida, arrastados pelas mesas dos cafés ou deambulando pelos shoppings ou pelo libertador calçadão da praia.

Em silêncio, foi até ao bar, bebeu uma fraternal cerveja e puxou dum papel a registar palavras que logo deitaria fora, com os inúmeros guardanapos rascunhados teria hoje já um livro editado, até chegara a pensar num título, Diário dum Guardanapo sem Futuro. O empregado da esplanada era da velha guarda, “amigo”, se amigos são todos os que ficaram na foto, prova estática dum passado a sépia. Não há amigos. Há momentos. Amigos talvez fossem os que estavam quando o flash disparou. Capturados no passado, porém.

Sentiu que algo se perdera, e também ele se perdera, curioso, é que ninguém se ousava encontrar, seguindo o argumento dum filme onde só há enredo em flashback, filmes demodé, de vidas vividas mas arquivadas.

Olhou para o telemóvel, terminou a cerveja, e sem hesitar, apagou o nome do Rui. A vida é uma agenda em permanente actualização.

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