Amarela e castanha,
finalmente a natureza retomava as rotinas e cheiros de finais de Outubro. Para
a Gracinda, velha médium de Galamares, por muitos levada a sério em conselhos e
mezinhas, os espíritos dos mortos voltariam nessa altura, predadores dos vivos
para neles viver no ano seguinte, dissera-o à Virgínia, durante uma sessão
espírita, onde, por mil euros, a pusera a “falar” com o defunto Inácio.
Zombando, ainda assim cautelosos, os homens temiam sempre esses dias de
Outubro, refugiando-se na água-pé e castanhas, bem mais espirituosos que os
propalados espíritos agoirados pela velha, perita em pragas, e em tempos parteira da aldeia. Chegava o dia dos fiéis
defuntos, os velhos rumariam aos cemitérios, os mais novos, continuando a
tradição, pediriam pão por Deus, em renovado e ruidoso ritual.
Na noite de 31 de
Outubro, agora também do recente e celebrado Halloween, Hugo e Jaime
montaram-se na scooter a caminho da casa da Vera,
em Cabriz, para a festa combinada com os colegas do liceu. Vestidos a preceito, de bruxas e vampiros, uma
abóbora retalhada com velas no interior adornava o muro da casa, antevendo-se uma
noite de copos, fria, mas aquecida pelo álcool, e algum “bruxedo” mais noite
dentro, depois de algumas carinhosas dentadinhas no pescoço. A noite estava
fria e sem vivalma, animados, tomaram o caminho do Torrado pelo atalho,
silencioso e perturbador, apenas alguns rotweilers ladravam à
passagem. Sentado na scooter atrás de Hugo, Jaime, de capa preta,
acossava os cães, segurando uma garrafa de vodka
com que a festa animaria. Junto ao moinho em ruínas, a velha scooter acusou o peso, e qual burro velho, “pifou”, a meio do caminho.
-Bolas, é preciso
azar, meu, esta treta não quer andar mais!- rosnou Hugo,
os olhos pintados de negro, mais parecia um Zorro de segunda classe, montado
numa pileca cansada - acho que por hoje esta cena não vai dar mais! -conformou-se,
dando um pontapé na roda da motorizada.
-Fogo, meu, ganda
cena! Vamos a pé, daqui lá é pouco mais de meia hora! Amanhã a ver se o Leonel
vê o que se passa! Bora!
Encetado o caminho a
pé, ainda mandaram um SMS a avisar do sucedido, nenhum dos amigos, porém,
estava de carro, que os pudesse ir buscar. À passagem pela casa abandonada,
onde em tempos morara o velho Vicente, um cão preto, rafeiro, saiu-lhes ao
caminho. Manso, escanzelado, ali ficara desde a morte do velho amolador três
meses antes, vadiando e ladrando aos passantes, conhecidos de longa data:
-Tejo, anda cá!-
gritou o Jaime- vai para dentro, meu, andas às cadelas? Vai, vai!
O cachorro, sem dono
agora, ainda os acompanhou uns metros. Em noite sem estrelas e falhado o
candeeiro, já perto da Várzea, um repentino breu envolveu-os, entre a folhagem
densa e as árvores frondosas que antecediam a povoação. Ao longe, uma luz, em
casa da Gracinda, subitamente apagou-se, a velha recolhia por certo, no meio
das suas velas e mesas pé de galo.
Um pouco mais à
frente, uma voz roufenha cantava um velho fado de Marceneiro. Era o Seca-Adegas,
bêbedo como sempre, a pé para casa. Um vulto indistinto seguia-o, a poucos
metros, cambaleante mas em silêncio, à primeira não viram quem fosse, algum
parceiro de copos, o Seca, borracho como sempre, voltaria aos copos no tasco do
Sérgio na manhã seguinte. Ruborizado, cantava, com voz de cana rachada, à vista
dos dois jovens mascarados, ensaiou um ar de surpresa e empunhou a garrafa de tinto
como se fosse uma espada em riste:
-Quem são vocês os
quatro, homens de Deus? Se é para roubar vêm enganados, daqui não levam nada!
-Pôe-te lá manso, ó
Seca, somos nós não nos reconheces?
O velho ébrio cerrou
os olhos, e agarrou-os pelo ombro, mudando de atitude, o bafo a aguardente
quase contagiante:
-Oi,
rapaziada! Então onde é o Carnaval? Não pagam um copo aqui ao vosso amigo?
Estou com uma sede danada, quase não bebi nada hoje…- balbuciou, totalmente
borracho.
-Vai-te mas é deitar,
meu!- afastando-lhe o braço do ombro, Jaime procurou
livrar-se do bafo e do cheiro a bosta, não devia tomar banho há muitas semanas- então
e esse aí quem é?
-Esse quem?-
questionou, meio zonzo- não está aqui ninguém, só vocês!...- arengou.
-Aquele ali, com um
casaco pre…
Antes que terminasse
a conversa, um objecto contundente caiu brutalmente sobre a cabeça de Jaime,
decepando-a, e deixando o resto do corpo desgovernado a cair, o fato de vampiro
jorrando sangue estrada abaixo. Hugo ficou gélido. Sem que o Seca-Adegas
reagisse, o vulto chegou-se à frente, para zona iluminada, onde, boquiaberto,
Hugo reconheceu o rosto desfigurado do Vicente, lívido, coberto de terra,
segurando um machado de cortar lenha. Atónito, esfregou os olhos. O Vicente
morrera três meses antes, como podia estar ali?.
Olhando o Vicente e o
alheado Seca-Adegas, viu chegar o Tejo, ladrando de contente, e a
roçar-se no dono. Sem dizer nada, desatou a fugir, com a capa de vampiro
ondulando, embrenhando-se no mato e abandonando o corpo do amigo na viela escura.
Ao passar pela casa
da Gracinda, esta estava à porta, segurando um candeeiro a petróleo, como se já
esperasse por ele. Com um esgar sórdido, apontou-o com a mão enrugada e sentenciou:
-Acreditas agora
no regresso dos mortos? O Vicente veio buscar a sua presa. Para o ano, será o
Jaime quem virá buscar a sua! E rematou, ameaçadora:
-Assim é, na Noite
das Bruxas. Hoje, e na noite dos tempos!- e voltando para dentro apagou a
luz, desaparecendo na escuridão da isolada casa do Torrado.
Em Cabriz, os amigos,
já eufóricos e à luz de velas iam fazendo a festa,
divertidos. Vera estranhou a demora, e comentou com Pedro, disfarçado de Scream:
-Onde estarão aqueles
dois? Já tinham tempo de cá estar, meu!
-Não te preocupes, já
devem estar com uma de caixão à cova…
Lá fora, a serra
vigiava perturbadora, e a noite silenciosa escondia mais um crime de 31 de
Outubro. Alheio e brincalhão, o Tejo ladrava às cadelas no caminho do
Torrado, como sempre, desde então, lá estará logo à noite...
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