quarta-feira, 19 de novembro de 2014

Aquele 19 de Novembro


Eram seis da manhã quando Luís Filipe chegou da Concha, toda a noite curtira com a Ângela. Toldado por cubas libres e pelo som dos Duran Duran, depois de a deixar em casa, atirou-se para cima da cama, na vidraça a chuva flagelava. Sabia bem o remanso do edredon a ouvir chover lá fora, as coisas prometiam, no dia seguinte tomariam café no Bibió. Até ao meio-dia pareceu um lapso de segundos, até que a Miquelina o acordou, a senhora queria que o menino almoçasse com o senhor engenheiro, era o seu aniversário.

Enfiada uma T-Shirt dos Ramones, desceu para a sala, onde o Crispim, o velho caseiro, chegava assolapado para falar ao pai. Alheio, Luís Filipe trincou uma maçã, mais uma derrota do Sintrense, pensou, o velho era ferrenho e fora jogador em novo:

-Ui senhor engenheiro, nem queira saber! O rio subiu mais de três metros! Em Colares, até os tonéis do ramisco andam a boiar cá fora, o Cantinho e o bananeiro, está tudo debaixo de água!

O engenheiro pasmava:

-Coisa estranha, Crispim, aqui choveu muito, mas nada do outro mundo. Destes por alguma coisa, Mafalda? -sondou junto da esposa, que aquecia o leite na cozinha, enquanto a Miquelina não chegasse com opão.

-Não, nada de especial. Só se o teu filho deu por algo, andou na vadiagem! –respondeu D. Mafalda virando-se para Luís, ainda rameloso, chovera mas nada demais, eram uns exagerados. Chegada sem o pão, que não conseguiu lá chegar, a Miquelina arfava, com o saco na mão:

-Benza-o Deus, que coisa nunca vista! O meu primo Júlio, que mora ao pé do rio, em Galamares, ficou sem nada! Até o frigorífico apareceu a boiar em Colares, ao pé do Grémio! Isto quando Deus quer!..

Reparando bem, a luz fraquejava, e não tardou em faltar pelo resto do dia, o jantar de anos estava estragado, a tia Glória telefonava a dizer que de Sintra para baixo ninguém passava. Maroto, o Crispim confidenciou ao engenheiro:

-Parece que a minha prima Micas quando veio a chuvada grande estava enrolada com o Noel, o marido veio a correr saber se ela estava bem e apanhou-os na cama, com a cheia não se pôde escapulir. Nem quero pensar a sova que a magana vai levar! -soprou, solidário com o primo, D. Mafalda fez-se desentendida, nunca fora de dar confiança à criadagem.

Luís decidiu ir ver os estragos. Descendo de bicicleta do pinhal de Janas ao Mucifal, uma massa de água suja e detritos cobria toda a várzea. Entre maçãs e damascos pululavam  fogões, mesas, roupa e detritos, até os carros dos bombeiros estavam alagados. Passando o Cantinho com água pela cintura, quis ir ver o mar à Praia Grande, mas a ponte ruíra e só por Almoçageme se chegava. No Penedo, em casa de Ângela, nada sucedera, porém, as árvores caídas denunciavam a revoada, um rádio a pilhas dava nota de grandes estragos em Sintra. No Jamor e Ribeira das Jardas, a água galgara as linhas de água, castigando as construções em leito de cheia.

Com o passar do dia, a coisa adensava:os galináceos da Ermelinda afogados, a Jacinta sem casa, até a cama fora na enxurrada, a paróquia acolhia desalojados, dando-lhes leite e cobertores. Cancelada a festa de anos, o engenheiro e a mulher foram ajudar os vizinhos.

Chorosa, recolheram a Jacinta e os dois pequenos, uns pijamas de Luís Filipe, apesar de grandes, refrearam o frio e o terror espelhado nas caras. Sem luz, ricos e pobres carpiam as mágoas de quem nada pode, fogo ou água, dos quais Sintra tem regular visita. Antes que o dia virasse no calendário, Luís Filipe, já com a ressaca curada, puxou do isqueiro, e, juntando todos na cozinha à luz de velas, propôs que cantassem os parabéns. Com chuva ou sem ela, eram os anos do pai:

-Parabéns, velho! -saudou, dando-lhe um beijo na face, para ele, mais um aniversário, para muitos um dia que não queriam repetir. Aos poucos, o rio acalmava, e recolhia das margens, após a fúria, era tempo de reconstruir.

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