sábado, 1 de novembro de 2014

"Pão por Deus!"





Emília tinha sido despedida, com o marido entrevado depois duma queda da grua e um filho autista, não se podia dizer que a vida lhe sorrisse. Ainda jovem depositara esperanças na carreira de professora, desiludida, terminara numa fábrica de fogões, num trabalho rotineiro e mal pago. A fábrica faliu, porém, deixando salários por pagar e as contas a acumular. Moravam numa casa que o sogro lhes deixara em Lourel, aziaga terra entre dois cemitérios, como costumava dizer em momentos de depressão. Ainda se lhe saísse o Euromilhões! Jogava todas as semanas, mas a sorte nunca lhe sorrira.

Naquela sexta-feira, jogou os seis euros do costume no café do Baptista e guardado o papel seguiu para casa. No dia seguinte ao sorteio procurou no jornal a chave premiada, invariavelmente origem de nova deceção. Porém, ao procurar pelo registo, não o encontrou. Cartões, faturas para pagar, o passe, nada! Deixá-lo, não iria sair, de qualquer forma. Lembrou-se que tinha apostado em números seguidos, 6-7-8-9-10, nas estrelas, no 4 e 5. Conferindo a chave no jornal, os números premiados eram 6-7-8-9-10 e as estrelas o 4 e o 5, a televisão anunciara haver só dois premiados, um em Portugal e outro na Bélgica, cinco milhões de euros para cada um. Emília quase teve uma apoplexia! Eram os seus números! Perturbada, voltou a casa e esvaziou a mala vezes sem conta, a carteira, as gavetas, até o contentor do lixo. A sorte passara à porta, mas jamais veria o dinheiro que mudaria a sua vida.

No dia seguinte era feriado, Dia de Todos os Santos, pela manhã rebanhos de miúdos ruidosos de saco de pano na mão, iam correndo as casas e cafés, pedindo Pão por Deus, ancestral tradição na busca da romã, língua-de-gato ou chocolate que os vizinhos ofereceriam, como acontecia de de geração em geração. E lá iam de porta em porta, os mais velhos guiando os mais novos, tocando as campainhas e repetindo a cantilena que abriria a porta presentes naquela espécie de Natal antecipado. Pão por Deus! Pão por Deus!

Filipe, com o Joãozinho pela mão ia também, a mãe deixara, mas na condição de não irem para longe, queria-os em casa ao meio-dia. Com o saco quase cheio, bateram à porta da Emília, mais três casas e terminariam, para o Filipe, que iria fazer treze, era tempo de passar o testemunho. -Pão por Deus! –iam gritando, com os os cães a ladrar à passagem daquela desusada peregrinação.

Ainda em transe com a história do Euromilhões, Emília nada contara em casa, ainda, quase em depressão, queria era sossego, e muito menos estava com paciência para miúdos:

-O que é que querem daqui? Julgam que isto é a Mitra? Tomara eu ter para mim, quanto mais para vocês estragarem. Os vossos pais que vos aturem! –reclamou, mal-humorada, ainda em roupão e com os cabelos revoltos. E se não se vão já daqui embora, largo-vos o cão, vão ver!

Mulher chata, pensaram os irmãos.

-Pronto, minha senhora, vamos já embora!

À saída do quintal, Joãozinho deu com os olhos num pequeno papel branco caído atrás dum vaso. Na inocência dos seus oito anos, não percebeu o que era, olhando para trás, chamou a Emília, que estava ainda à porta, esperando que fechassem o portão.

-Oh minha senhora. Quer que lhe ponha este papel no lixo?

-Qual papel? Ainda aí estão? Com um raio, nunca mais se vão embora! –arengou, impaciente.

-Isto! -e correu a entregar-lhe o papel achado junto ao vaso.

Milagre de todos os santos! Era a premiada chave do Euromilhões, os cinco milhões da felicidade. De olhos esbugalhados, Emília soltou um grito emocionado:

-Virgem Santíssima! Ai meu Deus que me dá um enfarte! Alberto! Alberto!

Joãozinho  não entendeu a algazarra, a mulher não só não lhes dera nada, como era maluca, pensou, e afastou-se para ira ter com o irmão, a volta do Pão por Deus estava quase completa.

Junto à porta, Emília abraçava o marido, a quem enfim contou o sucedido, tanto ria como chorava, num chorrilho de emoções incontroladas. Vendo que o pequeno já sumia na esquina, correu no seu encalço:

-Ó meu filho, vem cá, não te vás embora!

Deu-lhe dois beijos lambuzados e correu à cozinha, onde três pacotes de bolachas e um Toblerone voaram para o saco, repentinamente pequeno-E para a semana vem cá ter comigo sem falta, ouviste? Já tens uma Playstation?

Maria Emília e o marido moram agora numa vivenda em Colares, com um jardim tratado pelo senhor Isidro. O marido montou um negócio em casa, foram às Canárias de férias e o pequeno Marco anda numa escola especial. O resto é para assegurar o futuro.

Um pequeno papel branco pode mudar o papel de muitas vidas. Para o ano, e por alguns anos ainda, lá estará o pequeno João com o seu saco de pano, patrulhando as casas daqueles pais natais sem barba branca, enchendo o saco de línguas-de-gato e rebuçados coloridos, tesouro acumulado proferida a palavra mágica: Pão por Deus!      

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