quinta-feira, 13 de novembro de 2014

O Guardião do Éden


O cavalo internava-se na mata, provocando um restolhar na terra húmida e fértil, à sombra dos penhascos do Éden verdejante. O cheiro inebriante da floresta entorpecia os sentidos, sem pressa, o cavaleiro absorvia-o, bálsamo da alma e revigorante do corpo.

Carlos Carvalho, regente florestal de Sintra, observava as suas plantas e árvores, sentinela  do génesis, jardineiro da Vida, cavalgando pela vasta propriedade, enquanto no lago um pato deslizava pela água fresca, qual príncipe esperando o desfazer dum encanto. Muitos anos tinham passado desde que pela primeira vez ali chegara, as araucárias eram agora vetustas e portentosas, regadas por muitas chuvas e invernos, e sempre miraculosamente despertas do letárgico sono a cada primavera redentora. No Éden de Carvalho, “o Carvalho da Pena” como, agradecidos, os patrícios o tratavam, a flora atingia o clímax fecundo. Havia criptomérias do Japão, fetos da Nova Zelândia, cedros do Líbano, araucárias do Brasil, até tuias da América, tudo preciosa herança do velho rei D. Fernando. Carvalho recebeu o legado, e tratou-o como seu, pai extremoso, enfermeiro atempado, vigilante do paraíso, antes jovem jardim de rosas e camélias e agora garbosa floresta de vetustos carvalhos, como ele, o Carvalho, incontornável, rosto tímido atrás do vasto bigode, sem pressa e introspectivo. Sentia a ampulheta do tempo esgotar-se, e cada passeio era agora de despedida. Sabia a idade de cada uma das suas protegidas, que lhe retribuíam, agradecidas, com cores para todas as estações, em anual milagre da clorofila. Cada abate que fortuito se impusesse, fazia-o pedindo perdão, breve outra planta ocuparia esse lugar.

Cavalgava e lembrava a velha condessa, e como já perto da morte lhe jurara cuidar do Éden. Logo se lhe juntaria, o eucaliptus obliqua, lacre do amor dela e de D. Fernando, plantado no dia do seu casamento, crescia garboso e diariamente com ele falava como se fosse um velho amigo.

Naquela manhã visitá-lo-ia o neto da condessa, Azevedo Gomes, como ele hortelão de milagres, sempre zelando para que o verde manto protegido não sucumbisse às labaredas do inferno que por vezes rondavam o Jardim. Azevedo Gomes aliara os seus conhecimentos silvícolas à aturada experiência de Carvalho, estudando a serra para um futuro livro. Lentamente, fazia a monografia do parque, o conhecimento escrito e o sabido em frutífera união. Encontraram-se na Fonte dos Passarinhos, ao fim da manhã, sob um sol outonal. Era um momento muitas vezes repetido, a romagem aos canteiros e condutas de água, conselhos sobre cortes e podas, ideias para repor espécies endémicas e repelir as infestantes. O dinheiro não abundava, e Carvalho, com poucos e generosos jardineiros, cuidava como seu um património que os responsáveis não acarinhavam.

-Sabe, senhor engenheiro -lamentou, enquanto caminhavam a pé –sinto que estou a ficar sem forças. Não sei o que vai ser disto depois. O Ministério…

Antes que concluísse, Azevedo Gomes, agarrou-lhe o braço, interrompendo-o:

-Ora, ora, amigo Carvalho, vão as araucárias crescer mais três metros e ainda você aí estará para as curvas. Quando a semente é boa, a árvore sai rija!

O Carvalho da Pena fixou os olhos mortiços no eucaliptus obliqua e suspirou, com ar cansado:

-Quando a minha hora chegar, gostava que fosse assim, de pé! -e abriu os braços, fazendo menção de abraçar o portentoso tronco, e com ele, toda uma vida a trote, à chuva e ao sol, pelas ravinas bordejadas de fetos, orientando os guardas, e zelando pelo “seu” parque. Azevedo Gomes pôs-lhe a mão no ombro, e em silêncio seguiram por um caminho de pedra. Uma pequena araucária, tombada e com apenas vinte centímetros ameaçava morrer, as mãos enrugadas do velho jardineiro logo a acondicionaram com terra, e um regador oportuno revigorou com água aquela promessa de vida.

-Carvalho, creia-me, se esperamos o que não vemos, com perseverança esperaremos. Este não é só o Parque da Pena. É o Parque do Carvalho da Pena!

Carvalho sorriu, pensativo, finda a visita, despediram-se. Não mais tornariam a ver-se. Carlos de Oliveira Carvalho, administrador florestal do Parque da Pena desde 1911, morreu pouco tempo depois. A pequena araucária, essa, mede já trinta metros, salva pela mão do Carvalho. Da Pena.

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