quinta-feira, 23 de outubro de 2014

De Casablanca ao Hotel Netto


O Douglas DC-3 proveniente de Casablanca aterrou era já noite na Granja do Marquês. Fugindo da barbárie nazi, Ilse Lund e Victor Lazlo logravam escapar do major Strasser, com o apoio de Rick e a complacência do capitão Renault. Victor, chefe da resistência checa no exílio, esperaria em Portugal o necessário visto para a América, a partir de onde reorganizaria a oposição à ocupação nazi.

No aeródromo, em Sintra, aguardava-os Mário Soares, destacado pelo sector intelectual do MUD para os acompanhar enquanto não obtivessem o almejado visto. Conduzindo um Ford de 1935, Mário levou-os para Sintra, onde os alojou no Hotel Netto, sob o falso nome de Walinski, polacos de visita a Elieser Kamenesky, o ator russo que entrara no Pátio das Cantigas. A estadia seria de duas semanas e Soares o elemento de ligação.

No dia seguinte, já acompanhado pela noiva, a jovem Maria Barroso, levou-os a conhecer o Estoril e a costa. Mais faladora, Ilse interessou-se pelo português:

-Já alguma vez esteve em Paris, Mário?

-Nunca, miss Ilse, embora tenha a maior paixão pelos escritores franceses. O Anatole France, o Malraux, que é nosso camarada sabia…-comentou, num francês arrevesado, línguas não eram o seu forte.

-Ah Paris... -suspirou, transportando-se para as recordações duma existência curta, mas cheia de desencontros. Em Paris fora feliz com Rick, e aí o perdera, em Casablanca de novo a vida os cruzara, mas sem voltar a juntar.

Mário era um idealista. Recrutado para a célula intelectual dos comunistas, os contactos com a resistência no exterior eram-lhe familiares, tinha como controleiro o seu professor de geografia no Colégio Moderno, o circunspecto Álvaro Cunhal. Curioso, sondou Victor sobre o curso da guerra. Subitamente desperto, o checo ganhou enfim interesse na conversa:

-A Résistance está muito activa, Mário, os partisans estão espalhados por todo lado e muitos patriotas lutam contra os ocupantes. Vichy, creio, estará por dias. Em Lyon a propaganda aumentou desde que mataram o Marc Bloch, sabia?

-Quando a guerra acabar, também Salazar será afastado, Victor. Ele faz–se passar por neutro, mas é um germanófilo convicto. Lisboa está infestada de alemães, e você é um alvo a abater, tem de se resguardar. Não aconselho que saiam de Sintra até chegarem os papéis! –recomendou.

Os dias seguintes foram descontraídos. De manhã, passeio até Seteais ou pela serra, pela tarde, ler e escrever cartas, sempre com o pensamento nos camaradas em perigo, em Praga e em toda a Checoslováquia. Vaclav fora capturado, e internado em Teresin, muitos estavam na clandestinidade ou  em parte incerta.

Certa manhã, duas semanas passadas desde a chegada, ao descer para o pequeno-almoço Ilse reparou em dois vultos com malas de viagem falando inglês com o recepcionista do Netto. Um, alto, com uma gabardina branca e chapéu preto, o outro, um negro, exibindo reservas para o hotel. Sentiu um frémito quando reconheceu as personagens: eram Rick e Sam, o pianista do Rick’s, em Casablanca, logo correndo para eles com incontida alegria. Surpreendido ao vê-la, o negro pôs um sorriso franco e sonoro:

-Por aqui, miss Ilse? Gosh, como o mundo é pequeno! -saudou sorridente o velho Sam.

-Que fazem aqui, quero saber tudo! -Ilsa ganhou um ânimo jovial ao reencontrar quem nunca quis perder. Meio retraído, Rick sondou-a:

- E… Victor…?

-Está no quarto, escrevendo. Mas, digam-me, o que fazem aqui, na Europa?

Antes que Rick lhe respondesse, o pianista adiantou as novidades:

-Mr.Rick vendeu o café, miss Ilse, vamos a caminho de França. O capitão Renault foi colocado em Marselha, e convidou-nos para abrir lá um casino. Depois da guerra acabar, vai ser o nosso novo sócio.

-Que bom para vocês…-comentou Ilse, ainda surpreso, Rick estava parco em palavras. De novo o destino os juntava e logo iria separar, nunca fruindo senão breves momentos de felicidade.

Sabedor da chegada dos americanos, Victor desceu a cumprimentar os amigos, com destino oposto ao seu. Nessa noite, jantaram no salão do Netto. Quatro vidas diferentes e desencontradas numa Europa destroçada, reuniam-se numa bela e serena vila portuguesa, para quem a guerra era sobretudo a praga do racionamento. Depois do jantar, Victor recebeu uma chamada de Mário e premonitório, Sam levantou-se para fumar um cigarro, deixando Rick e Ilse a sós. Na varanda do hotel, com vista para o castelo mouro, com as chaminés alvas do palácio mesmo ao lado, deixaram-se ficar em silêncio por momentos, vendo esvoaçar a baforada do cigarro na noite fresca. Passada alguma hesitação, Ilse decidiu-se a falar:

-Rick, eu….

-Palavras não alterarão nada, Ilse –interrompeu o americano, pondo-lhe um dedo nos lábios. -Victor precisa de ti, e eu nunca te poderei dar a felicidade que mereces. Somos pessoas de mundos diferentes, e hoje não pertenço a nenhum.

Terminado o cigarro, Rick saiu a deambular sem rumo, a noite estava amena mas brumosa. Acabrunhada, Ilse passou ao salão, onde entretanto Sam descobrira um piano velho. Instintivamente, agarrou-o pelo braço e fez-lhe um pedido:

-Toca, Sam.Toca “As time goes by”….

O pianista hesitou, mas anuiu, puxou do banco, e uma vez mais a nostálgica melodia ecoou no salão do Hotel Netto. Definitivamente, seguiriam o seu rumo.

Três dias depois, Mário e Maria levaram Ilse e Victor ao aeródromo, a caminho da América, enquanto no mesmo dia Rick e Sam voaram para o sul de França, ao encontro do novo negócio.

A guerra acabou e Victor Lazlo finalmente voltou a Praga, mas novo percalço o esperaria. Estaline substituíra os anteriores ocupantes por novos da sua confiança, adiando por vários anos a esperança na liberdade. Acabou preso, e morreu em 1950, amargurado e sem ver o seu país livre. Ilse foi para a América, então, e dedicou-se a escrever livros para crianças. Rick e Sam, depois de uns anos em Marselha, instalaram-se em Cuba, e lá abriram um casino, onde pontificava um cliente admirador de Sam, um tal Ernest Hemingway. Amargurado e refém do álcool, Rick acabou vítima de cirrose, por altura da revolução cubana.

Por cá, Mário e Maria casaram, e no fim da guerra ele acabou por se afastar dos camaradas, encetando uma via política reformista e sempre contra Salazar. Ainda hoje, na sua casa em Nafarros, entre centenas de livros e quadros, uma foto emoldurada de Victor e Ilse recorda os saudosos compagnons de route de passagem por um país pardacento no remoto ano de 1943.

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