sexta-feira, 24 de outubro de 2014

O anjo de Portugal




Prestável, o groom do Hotel Borges abriu a porta, posto o que o vulto de sobretudo e chapéu preto perguntou pela hóspede do 308. O pai ou um tio, pensou. Ar pesado e chapéu enterrado, um carro ficou esperando à porta da Brasileira. Era sábado, e Lisboa estava vazia, com as famílias a banhos em Sintra e na Parede. Contactada pelo telefone, uma voz mandou subir o visitante, que trazia uma garrafa de vinho, do Dão, descortinou o groom de soslaio, antes deste entrar no ascensor e subir ao segundo piso.Com o coração a palpitar, Mercedes abriu a porta, olhando a ver se havia mais alguém no corredor, e mandou-o entrar, segurando-lhe  o chapéu. Ela confidenciara já a António Ferro o desejo de o conhecer, e ele correspondia, numa altura em que a Garnier não o largava. Raramente ia a encontros mundanos, eremitando no Estoril ou em S. Bento, mas os agradáveis passeios no Vimieiro com a francesa haviam-lhe devolvido juventude, comprara até um fato branco, de linho, e botas novas. Terminado um chá com Christine, a carta ardente da frágil admiradora levou-o direto  para o Chiado, onde terminaria o sábado.

Mercedes já lhe havia escrito cartas exaltadas, que, sem responder, guardara expectante. O doutor Salazar, já nos sessenta, provocava-lhe fascínio, os seus cabelos esbranquiçados conferiam-lhe o ar seguro de um anjo da guarda, protetor e vigilante. Recatado mas não abstinente, cedia agora à terrena e carnal tentação de macho. Os mexericos sobre a sua misoginia divertiam-no, lembrando a sua primeira vez ainda seminarista em Coimbra, com a Felismina. O Manuel, hoje cardeal, ficara de guarda, enquanto, ardendo em fé, penetrava os húmidos desígnios de Deus. Mercedes trouxe dois copos e sentou-se a seu lado na poltrona, enquanto ele tirava o casaco e abria a garrafa:

-Então a Mercedes costuma escrever? Saiu ao seu pai por esse lado, mas no resto é a sua mãe, tal e qual- galanteou, brindando e recordando a sueca,   viúva de António Feijó. Leitão de Barros apesar de só ter olhos para os  rapazes da Tóbis, gabara-lhe a beleza num jantar da União Nacional.

-O senhor professor conheceu-a? Que memória formidável, eu…

-Chame-me António- atalhou, pousando-lhe a mão sobre a perna que ardia debaixo dum vestido de chantung. Mercedes ruborizou, aquela intimidade com o Presidente do Conselho, a quem só raras vezes vira e ouvia com voz firme na Emissora Nacional, deixou-a entorpecida, bebendo o Dão de um trago só, lembrando depois  que nem apreciava vinho.

-Muitos pensam que sou um bota-de-elástico, mas até aprecio um bom teatro, e boa música, zarzuelas sobretudo. Alguns mal-intencionados zurzem contra mim porque prossigo sem desvio a missão que a Providência me confiou, mas ignoram o que é ser um português das quinas e cristão temente a Deus. O Norton de Matos ladra muito, mas sabe que usa ceroulas, o biltre? -confessou, divertido, oferecendo-lhe  a mão com que ferreamente governava a Nação.

-Sr. Presidente, eu…

-António…

-António, deixe-me dizer-lhe uma coisa. Desde há muito que guardo todos os seus discursos, e arquivo as suas fotos. Como pode ser tão generoso e entregar-se sem nada pedir em troca, quando podia ter uma esposa e filhos, que por certo o adorariam, você que é a locomotiva do nosso Portugal…-Já o vinho descomprimia os gestos e libertava o verbo, e uma tímida festa acariciava a cabeça de António, o timoneiro, que, silencioso e sem pressa ia enchendo outro copo. Vaporosa e nas nuvens, Mercedes saiu por instantes, prometendo regressar rápido, o Presidente do Conselho aproveitou para deitar um olhar pela janela. Um carro guinava para a António Maria Cardoso com um jovem algemado. O Agostinho Lourenço  não dorme, pensou, entre o prazer pela conquista próxima e a visão de mais um ingrato, apanhado pela zelosa polícia. Enfim, Pátria e prazer começam com a mesma letra, murmurou para consigo mesmo.

Do quarto contíguo chegou Mercedes, entretanto, deixando desnudada uma lingerie negra e sedosa, um soutien rendado realçava-lhe os generosos seios, pronta a governá-lo, agora. Salazar sorriu, com um ar seráfico de sacristão em dia de procissão, ela envolveu-o e puxou-o para a cama. Já aliviado do fato e das ceroulas de linho- afinal também usava, zombou Mercedes, gulosa - o dedicado servidor da pátria virava agora obediente servo, possuído por umas mãos aveludadas. Na vizinha PIDE, e à mesma hora, outro servo era dominado também, mas por fogosas e menos aveludadas mãos. Uma hora mais tarde, com o chapéu de novo enterrado, saiu do hotel, em silêncio, deixando o groom a olhar de lado,  o avarento nem uma gorjeta deixara. Esfomeada e satisfeita, Mercedes ligou para a receção a encomendar uma ceia, a Almirinha rebentaria, quando lhe contasse do encontro, na Ferrari.

No dia seguinte, ainda o batôn vermelho e a pele de Mercedes se lhe não desvanecera, solene e patriarcal António discursava no Encontro Nacional de Professores de Moral: “Portugueses: Ensinai a vossos filhos o trabalho, ensinai a vossas filhas a modéstia. E se não poderdes fazer deles santos, fazei deles ao menos cristãos”. Cristão, e abnegado santo, condestável da castidade, no sábado seguinte, qual anjo de Portugal, voltaria à sacristia do Borges, onde, peregrino, de novo acenderia uma vela…

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