terça-feira, 7 de outubro de 2014

Luís e Tin-Na-Men



A carta de Francisco Barreto era seca, e tinha o peso da autoridade régia: acusado de irregularidades, Luís Vaz de Camões, provedor dos Defuntos e Ausentes de Macau, deveria abandonar o posto de imediato. Jocosas redondilhas que publicara em Goa, e que o vice -rei não viu com bons olhos, levavam ao seu afastamento e corte da tença, ficando sem dinheiro para viver. Carreira para Lisboa, só depois da monção, a alternativa foi ficar em Patane, consumindo o tempo a escrever a história lusa, que quanto mais perseguido, mais celebrava, soldado do Império pelo mundo repartido.

Certa manhã soldados do vice-rei acercaram-se da gruta onde se acolheu e ordenaram-lhe que os acompanhasse, o capitão do Nau da Prata queria falar-lhe. Carregado de valiosas fazendas, fazia a carreira anual entre a China e Goa, Francisco Martins, o capitão-mor, detinha-se em Macau para embarque de mercadorias e da guarnição que renderia a de Goa, mais tarde. Pobremente vestido, e apenas com papéis que levou da gruta, foi Luís presente ao capitão, a bordo da nau:

-Sois Luís Vaz de Camões, antigo Provedor dos Defuntos e Ausentes desta cidade?

-Sim, malfadadamente sou eu essa pessoa, que me quereis?

-Tenho ordens de vos levar prisioneiro. E a ferros, ordens expressas.

-E tanta galanteria, deve-se a quê, dar-me-eis a mercê de saber?

-Ignoro. Porém, se não criardes problemas, poderei permitir que usufruais de alguma liberdade a bordo. Com restrições.

Olhando os papéis amarrotados que levava consigo, Francisco Martins questionou:

-E isso, que são? Despachos da Provedoria dos Ausentes?

-Não, senhor…-respondeu, irónico - tontarias de um português cativo…- aqueles versos, a que já dera vários nomes e titulava Os Lusíadas, eram uns gatafunhos ilegíveis, sem segredo algum, pelo que Francisco Martins deixou seguir, mandando-o conduzir ao porão.

A parafernália das fazendas misturava-se com o cordame e com os tripulantes, uns embarcados em Macau, outros cativos. Camões encostou-se a um canto, contemplando mais um destino perdido, a vida de novo repartida pelas naus e enxergas do Império. Com o olhar perdido no rio das Pérolas, levou tempo a perceber que uma jovem nativa o fitava, sentada numa arca de madeira.

-Estais triste senhor? –perguntou a medo, esboçando um sorriso frágil na cara pequena e arredondada.

-A tristeza é a minha companheira, e a dor o meu destino. Com tais musas sulcarei este mar de lágrimas. E vós, quem sois, jovem donzela?

-Não me reconheceis, de Patane?

-Acaso pude viver em Patane sem que meus olhos ficassem cativos de tão graciosa figura?

-Muitas eram as prisioneiras de vosso olhar, senhor…

-E por que nome responde tão bela flor-de-lótus?

Galanteador, Camões esquecia já ser prisioneiro, para se prender a outros ferros que os deuses lhe punham à frente.

-Sou Tin-Na-Men, de Patane, senhor, e viajo para Goa nesta nau.

-Tin-Na- Men…A Porta do Paraíso. Outro nome não caberia melhor a tão graciosa figura…-elogiou, beijando-lhe a mão.

Em boa verdade, Tin-Na-Men embarcara atrás daquele homem que de longe contemplava em Patane, por vezes falando sozinho, mas sempre enamorado, todas belas, todas sonetos eternos, e espontâneas redondilhas. Elas não entendiam, mas sorriam aos galanteios do enamorado português.

Uma semana passou, navegando do Mekong ao Índico, e Tin-Na-Men e Luís Vaz viveram dias de paixão, um novo destino parecia sorrir ao provedor dos ausentes. O capitão-mor observava, com um sorriso complacente, apesar de prisioneiro, até simpatizara com o desajeitado zarolho, seu irmão de armas, afinal. Goa, a nova etapa de exílio, seria amenizada com aquela pérola de jade que os deuses protetores lhe enviavam.

À terceira semana, Eolos mudou o rumo à viagem, as águas tornaram-se revoltas, e os piratas das Molucas cercaram a embarcação, sendo prontamente repelidos, no que Luís Vaz ajudou. Porém, o vento forte e as ondas fragilizaram o Nau da Prata, Francisco Martins mandou baixar as velas, que começavam a abrir fendas e descozer-se. No Olimpo, Eolos soprava, castigador, prudente, mandou embarcar as mulheres num bote, uma ilha estava perto, os homens a alcançariam a nado.

No momento do embarque, Luís e Tin-Na-Men abraçaram-se, haveriam de se salvar e desfrutar do seu amor. Camões, com os poucos pertences, foi dos últimos a saltar para a água, guardando os versos na camisa. O batel com Tin-Na-Men e as mais mulheres, depois de serpentear desgovernado, acabou porém engolido pelas águas, a sua frágil mão, submergindo, foi a última e cruel visão que dela teve Luís Vaz, náufrago da vida e de novo do amor.

Em Goa, a sua desditosa vida prosseguiu. Um fugaz amor lhe fora dado, e, avaro, logo roubado. Tin-Na-Men, a sua Dinamene, virara princesa do mar profundo, qual frágil pérola retornando à concha, pequena e alva. Lacrimejante, a sua pena escreveu saudade na areia branca e fina: Alma minha gentil, que te partiste/ Tão cedo, desta vida, descontente/ Repousa lá no Céu eternamente/ E viva eu cá na terra sempre triste/Roga a Deus, que teus anos encurtou/Que tão cedo de cá me leve a ver-te/Quão cedo de meus olhos te levou.

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