domingo, 12 de outubro de 2014

O Cálice





Novembro de 1307, já noite, um barco proveniente de Calais ancorava em Lisboa. Nele viajara um velho de barba esbranquiçada, de porte altivo e desafiador. Bertrand de Clairvaux, era o seu nome, mantinha o rosto fechado e transportava um baú de carvalho do qual não deixava ninguém aproximar. Em Lisboa aguardavam-no Lopo Guterres e Ramiro de Sintra, irmãos templários daquela vila, avisados da chegada duma personalidade importante e a quem deveriam receber.

-Bem vindo, Bertrand de Clairvaux! -saudaram, ambos já na casa dos quarenta, outrora combatentes em Gaza.

-Obrigado, irmãos. Já devem saber o que sucedeu com nosso mestre, Jacques de Molay? Vivemos tempos perigosos, e o rei de França está rodeado de intriguistas que conspiram para nos perder...

-Sim, nobre Bertrand, romeiros vindos de França trouxeram até nós as más novas. O Papa Clemente não pode permitir essa prisão infame! -protestou Ramiro, as novas da prisão do Grão-Mestre eram difusas, inventaram-se adorações satânicas, e numa aziaga sexta-feira de Outubro Lúcifer abatera-se sobre os cavaleiros do Templo. Misteriosamente, o rei Filipe, com a aquiescência do papa herético Clemente, mandara prender os templários de França e o seu Grão-Mestre, Jacques De Molay. Temendo também ser preso, Godofredo de Chorney chamou Bertrand e encarregou-o de uma missão secreta, em Portugal.

Um cavalo estava aparelhado para o levar a Sintra, mais duas mulas para os baús, ficaria alojado perto do antigo paço árabe, na propriedade aforada ao antigo Grão-Mestre, Gualdim Pais. Horas depois, lá chegaram, sem que Bertrand desviasse o olhar das mulas com os baús, sobretudo um, mais pequeno. Alojaram-no numa cela com vista para a serra, posto o que no dia seguinte, depois do terço, se reuniu com todos os cavaleiros, transportando consigo o baú mais pequeno:

-Irmãos de Portugal, venho até vós encarregue duma missão sigilosa, pelo que tudo o que aqui virem ou ouvirem não deverá transpor estas portas!

Intrigados, os cavaleiros juntaram-se em torno de Bertrand, tochas alumiavam a cripta subterrânea, onde até ali poucos tinham entrado.

-O provincial da Normandia, Godofredo de Chorney interpretou na profecia da cátara Esclarimunda ser Sintra o local onde deve ficar o conteúdo deste baú.

-Pedi o que precisares, nobre Bertrand, se necessário for, nosso sangue será derramado! -afirmou Lopo Guterres, o mais ancião do grupo.

-É precisamente o sangue derramado que me trás até vós - adiantou, intrigante. Dirigindo-se ao baú, de lá retirou um volume envolto em burel que religiosamente colocou sobre uma mesa. Era um cálice já enferrujado, deixando todos intrigados e entreolhando-se.

-Eis o que me trouxe a terras portucalenses!

O grupo ficou em silêncio, que importância poderia ter um cálice para uma viagem até Sintra? Bertrand fez uma pausa, olhou-os um a um, grave e solene, e ergueu-o, como se de uma eucaristia se tratasse:

-Cavaleiros do Templo, este é o cálice onde José de Arimateia recolheu o sangue de Nosso Senhor Jesus Cristo, na hora em que partia para encontrar o Pai!

Os cavaleiros sentiram um calafrio e ajoelharam, impelidos por um instinto irracional, fazendo o sinal da cruz. Ali estava o Santo Graal! Não era loa de bardos, afinal, a perseguição à Ordem obrigava a salvar de mãos heréticas a relíquia há séculos guardada.

-O santo cálice repousava há doze centúrias em Montsegur, onde a mártir Esclarimunda o guardou, depois de lhe ter ser confiado por José de Arimateia-continuou. Poucos sabem da sua existência. Agora, aqui ficará em segurança, de acordo com a vontade de Esclarimunda: “quando o sangue real for perturbado, em paz repousará onde o Ocidente acaba, e a montanha vigia”. Aqui! -e bateu com a mão no peito, olhando o infinito, a missão estava a chegar ao seu termo.

Um a um, os cavaleiros contemplaram o cálice, como se Cristo em pessoa tivesse descido à cripta, benzeram-se, e beijaram-no com emoção. Com fervor, velaram toda a noite, rezando e observando jejum.Antes de nascer o sol, colocado o cálice numa bandeja e formados em procissão, seguiram por uma catacumba na direção do paço árabe, e, numa sala em abóbada de berço, com por colunas sugerindo um hipogeu, debaixo duma laje o guardaram. Bertrand virou-se para os cavaleiros e enfatizou:

-Um Cavaleiro Templário é destemido e seguro, e tem a alma protegida pela armadura da fé, assim como o corpo pela armadura de aço! Non nobis Domine, non nobis, sed nomine Tuo ad gloriam!

Em 1314, após sete anos de terríveis provações, Jacques de Molay foi supliciado e Clemente V extinguiu a Ordem do Templo, expropriando-a de todos os bens. Mais complacente, por cá, D. Diniz, ao fim de uns anos criou a Ordem de Cristo, e sob a sua égide puderam os cavaleiros sobreviver e as velas portuguesas sulcar os mares, anos mais tarde. Silencioso, na noite dos tempos, o Santo Graal continua em Sintra…

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