domingo, 12 de outubro de 2014

O Guardião de Tempestades




Passeava D. João III nas escarpas da Roca, infernal promontório que sempre o atemorizara, quando fortes relâmpagos sobre o mar aconselharam que recolhesse à Penha Longa, onde veraneava. Quisera o destino que dias antes morresse o infante D. Filipe, seu herdeiro, e de Espanha Francisco Lobo reportasse a morte da irmã, a imperatriz Isabel. Rei em permanente luto, dado à melancolia, sempre que se recolhia na Penha Longa, percorria a cavalo a ventosa fronteira do Reino. Pêro de Alcáçova Carneiro, que com Rodrigo de Castro o acompanhava, aconselhou o regresso, viria borrasca e anoitecia. D. João apeou-se, e deixou que o vento lhe açoitasse a face, desafiando os humores do Altíssimo que despejava a sua fúria sobre o mar. Pêro benzeu-se, escutando o som perturbador da Roca, e lembrou o terrível segredo do lugar, que seu pai lhe confessara em tempos do defunto D. Manuel:

-É bom que nos vamos, Majestade, a borrasca está perto, manda o Senhor que observemos respeito a Seus sinais de desagrado! Desta costa devemos guardar distância e respeito…

Sem espírito para argumentos, o monarca, nada disse. Assustado, e querendo ir embora, o valido empolou temores, com relatos exagerados:

-Há quase vinte anos, foi Milão batida por relâmpagos assim, de sorte que todos pensaram ser o fim de seus dias. Caindo um raio sobre a torre da fortaleza onde se guardavam as munições de artilharia, foi tal a destruição que até os alicerces foram arrancados, fazendo saltar as pedras, que despedaçaram pernas e braços. De duzentos homens, sobreviveram doze, sendo horrível o espetáculo das pedras lançadas a mais de quinhentos pés, vinte bois não as teriam levantado. Devemos temer, em dias como este!

Divertido com o temor do secretário, o rei deteve-se à chuva, lá em baixo, numa nesga de areia, peixes saltitavam assustados. Carneiro cerrou o fácies, alarmista, e continuou a arenga:

-E também em Brabante, no sétimo de Agosto de 1527, um trovão abalou Malines, de tal modo que todos pensaram ter a cidade sido engolida, deixando no ar um insuportável cheiro a enxofre!

D. João mandou calar o fidalgo, mas este continuou o desfiar dos horrores, achando contudo que não confessava o que na verdade o preocupava:

-No templo de Hánon, na Líbia, onde Satanás se fazia adorar em forma de bode, este ali juntou uma infinidade de tesouros - continuou. Quando o rei Cambises da Pérsia enviou um exército a pilhar o templo, o chifrudo encheu o céu de trovoadas e trovões, matando cinquenta mil homens sufocados e queimados. Há que temer quando ele ronda estas escarpas, Majestade!

Segurando a montada, Rodrigo de Castro reforçou os temores de Pêro de Alcáçova Carneiro:

-Melhor seria que fossemos, sim. Não há muitos dias, houve notícias de um clarão na catedral de Siena, quando o Santo Padre rezava missa, a todos deixando em pânico. A Deus o que é de Deus, Senhor! –rematou o fidalgo, benzendo-se.

El-Rei anuiu, e debaixo de chuva intensa tomaram a estrada da Penha Longa, o mar estava roxo e as ondas ameaçadoras. Já afastados, na praia, entre peixes voadores, desperta do sono uma besta com forma de morcego assumou à entrada duma gruta, deixando ver a cabeça com escamas achatadas e umas asas descomunais. Diabólico, tinha por prodígio dominar os peixes, e instruí-los no afundamento dos navios que lhe invadissem os domínios. Poucos o haviam avistado, o fel que expelia sobre os incautos  logo os cegava, e deixava inférteis. Âncora ou arma, corda ou máquina, jamais puderam contra o monstro da Roca, a quem escamas cobriam um corpo de forma humana. Já Plínio o descrevera a Tibério, em noites de tempestade soprando numa enorme concha, e semeando a morte nos mares atlânticos.Senhor da Tempestade, era dele a Roca e suas perturbantes profundezas.

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