sexta-feira, 31 de outubro de 2014

Halloween em Galamares



Amarela e castanha, finalmente a natureza retomava as rotinas e cheiros de finais de Outubro. Para a Gracinda, velha médium de Galamares, por muitos levada a sério em conselhos e mezinhas, os espíritos dos mortos voltariam nessa altura, predadores dos vivos para neles viver no ano seguinte, dissera-o à Virgínia, durante uma sessão espírita, onde, por mil euros, a pusera a “falar” com o defunto Inácio. Zombando, ainda assim cautelosos, os homens temiam sempre esses dias de Outubro, refugiando-se na água-pé e castanhas, bem mais espirituosos que os propalados espíritos agoirados pela velha, perita em pragas, e em tempos parteira da aldeia. Chegava o dia dos fiéis defuntos, os velhos rumariam aos cemitérios, os mais novos, continuando a tradição, pediriam pão por Deus, em renovado e ruidoso ritual.

Na noite de 31 de Outubro, agora também do recente e celebrado Halloween, Hugo e Jaime montaram-se na scooter a caminho da casa da Vera, em Cabriz, para a festa combinada com os colegas do liceu. Vestidos a preceito, de bruxas e vampiros, uma abóbora retalhada com velas no interior adornava o muro da casa, antevendo-se uma noite de copos, fria, mas aquecida pelo álcool, e algum “bruxedo” mais noite dentro, depois de algumas carinhosas dentadinhas no pescoço. A noite estava fria e sem vivalma, animados, tomaram o caminho do Torrado pelo atalho, silencioso e perturbador, apenas alguns rotweilers ladravam à passagem. Sentado na scooter atrás de Hugo, Jaime, de capa preta, acossava os cães, segurando uma garrafa de vodka com que a festa animaria. Junto ao moinho em ruínas, a velha scooter acusou o peso, e qual burro velho, “pifou”, a meio do caminho.

-Bolas, é preciso azar, meu, esta treta não quer andar mais!- rosnou Hugo, os olhos pintados de negro, mais parecia um Zorro de segunda classe, montado numa pileca cansada - acho que por hoje esta cena não vai dar mais! -conformou-se, dando um pontapé na roda da motorizada.

-Fogo, meu, ganda cena! Vamos a pé, daqui lá é pouco mais de meia hora! Amanhã a ver se o Leonel vê o que se passa! Bora!

Encetado o caminho a pé, ainda mandaram um SMS a avisar do sucedido, nenhum dos amigos, porém, estava de carro, que os pudesse ir buscar. À passagem pela casa abandonada, onde em tempos morara o velho Vicente, um cão preto, rafeiro, saiu-lhes ao caminho. Manso, escanzelado, ali ficara desde a morte do velho amolador três meses antes, vadiando e ladrando aos passantes, conhecidos de longa data:

-Tejo, anda cá!- gritou o Jaime- vai para dentro, meu, andas às cadelas? Vai, vai!

O cachorro, sem dono agora, ainda os acompanhou uns metros. Em noite sem estrelas e falhado o candeeiro, já perto da Várzea, um repentino breu envolveu-os, entre a folhagem densa e as árvores frondosas que antecediam a povoação. Ao longe, uma luz, em casa da Gracinda, subitamente apagou-se, a velha recolhia por certo, no meio das suas velas e mesas pé de galo.

Um pouco mais à frente, uma voz roufenha cantava um velho fado de Marceneiro. Era o Seca-Adegas, bêbedo como sempre, a pé para casa. Um vulto indistinto seguia-o, a poucos metros, cambaleante mas em silêncio, à primeira não viram quem fosse, algum parceiro de copos, o Seca, borracho como sempre, voltaria aos copos no tasco do Sérgio na manhã seguinte. Ruborizado, cantava, com voz de cana rachada, à vista dos dois jovens mascarados, ensaiou um ar de surpresa e empunhou a garrafa de tinto como se fosse uma espada em riste:

-Quem são vocês os quatro, homens de Deus? Se é para roubar vêm enganados, daqui não levam nada!

-Pôe-te lá manso, ó Seca, somos nós não nos reconheces?

O velho ébrio cerrou os olhos, e agarrou-os pelo ombro, mudando de atitude, o bafo a aguardente quase contagiante:

 -Oi, rapaziada! Então onde é o Carnaval? Não pagam um copo aqui ao vosso amigo? Estou com uma sede danada, quase não bebi nada hoje…- balbuciou, totalmente borracho.

-Vai-te mas é deitar, meu!- afastando-lhe o braço do ombro, Jaime procurou livrar-se do bafo e do cheiro a bosta, não devia tomar banho há muitas semanas- então e esse aí quem é?

-Esse quem?- questionou, meio zonzo- não está aqui ninguém, só vocês!...- arengou.

-Aquele ali, com um casaco pre…

Antes que terminasse a conversa, um objecto contundente caiu brutalmente sobre a cabeça de Jaime, decepando-a, e deixando o resto do corpo desgovernado a cair, o fato de vampiro jorrando sangue estrada abaixo. Hugo ficou gélido. Sem que o Seca-Adegas reagisse, o vulto chegou-se à frente, para zona iluminada, onde, boquiaberto, Hugo reconheceu o rosto desfigurado do Vicente, lívido, coberto de terra, segurando um machado de cortar lenha. Atónito, esfregou os olhos. O Vicente morrera três meses antes, como podia estar ali?.

Olhando o Vicente e o alheado Seca-Adegas, viu chegar o Tejo, ladrando de contente, e a roçar-se no dono. Sem dizer nada, desatou a fugir, com a capa de vampiro ondulando, embrenhando-se no mato e abandonando o corpo do amigo na viela escura.

Ao passar pela casa da Gracinda, esta estava à porta, segurando um candeeiro a petróleo, como se já esperasse por ele. Com um esgar sórdido, apontou-o com a mão enrugada e sentenciou:

-Acreditas agora no regresso dos mortos? O Vicente veio buscar a sua presa. Para o ano, será o Jaime quem virá buscar a sua! E rematou, ameaçadora:

-Assim é, na Noite das Bruxas. Hoje, e na noite dos tempos!- e voltando para dentro apagou a luz, desaparecendo na escuridão da isolada casa do Torrado.

Em Cabriz, os amigos, já eufóricos e à luz de velas iam fazendo a festa, divertidos. Vera estranhou a demora, e comentou com Pedro, disfarçado de Scream:

-Onde estarão aqueles dois? Já tinham tempo de cá estar, meu!

-Não te preocupes, já devem estar com uma de caixão à cova…

Lá fora, a serra vigiava perturbadora, e a noite silenciosa escondia mais um crime de 31 de Outubro. Alheio e brincalhão, o Tejo ladrava às cadelas no caminho do Torrado, como sempre, desde então, lá estará logo à noite...

quarta-feira, 29 de outubro de 2014

A revolta das águas





-Que chatice! -protestou Ana Maria a caminho do Instituto, maçada com a chuva persistente, bem sabia que ela aí vinha, o forecast de satélite prognosticara uma superfície frontal. Sismologista no Instituto de Meteorologia, cabia-lhe a monitorização da atividade sísmica. Na véspera, 23 de Outubro, apenas um registo insignificante, um abalo na latitude 36,96 longitude -13,58, magnitude 2.0, na escala de Richter, registara o sismógrafo, em Lisboa. Nesse mês, o registo mais forte fora dia 7, pelas 22h18m, 4.0 na escala de Richter, nos Açores, com epicentro a 50 km de Ginetes, em S.Miguel.

Aproximando-se o aniversário do terramoto de 1755, iria trabalhar na comunicação que faria no CCB, com a ajuda de Tomás, seu jovem colaborador, um nerd, segundo a filha Bárbara, que tendo-se cruzado com ele uma vez logo o achou um chato, com óculos de massa e cabelo com caspa. Nessa manhã, também Tomás chegou cedo, para alinhavarem a comunicação:

-Bom dia, doutora? Bela chuvinha, hã…Já cá faltava!

-Sim, ao menos não teremos problemas com a falta de água em Bragança, Tomás. Como estamos de comunicação?

-Tenho o powerpoint quase pronto, doutora- adiantou-se, terminando um croissant, e querendo mostrar serviço- veja!

Abrindo o computador, foi passando uma sequência de quadros sobre o terramoto de Lisboa, explicando-os em detalhe:

-Em 1914, Harry Reid disse que a origem teria sido no Atlântico,100 quilómetros a ocidente de Portugal. Em 1940, um catálogo da sismicidade na Península, de um autor espanhol, apontou uma zona a norte do Gorringe, foi o Gorringe, 200 quilómetros a sudoeste do Cabo de São Vicente e 300 de Lisboa, que durante muito tempo concentrou as atenções. Essa montanha submarina tem 200 quilómetros de comprimento, está a 50 metros de profundidade e está rodeada de planícies abissais que descem aos cinco mil metros. E parece que tem estado ativo por estes dias, não tem ouvido as notícias sobre as erupções submarinas nas Canárias, doutora?

-Sim, mas essas já são frequentes- desvalorizou a sismóloga- Se fossemos a levar a sério todos os abalos dos Açores, por exemplo, vivíamos em alerta laranja…

Compenetrado, Tomás continuou:

-É uma estrutura geológica que está numa zona crítica para a tectónica de placas, na fronteira entre a euroasiática e a africana, que começa nos Açores e se segue com facilidade até ao Gorringe, mas aí, deixa de se perceber a transição. O traço da fronteira desaparece, porque passa a ser distribuído em várias falhas. O ponto onde se dá essa viragem é o Gorringe, por isso chamou tanto a atenção. Depois do sismo de 28 de Fevereiro de 1969, com uma magnitude de 7.5, passou a considerar-se que a origem do terramoto de 1755 teria sido a mesma. Ou seja, a sul do Gorringe, na Planície Abissal da Ferradura...

-Sim, Tomás, mas não esqueça que a chegada à costa dava tempos superiores aos dos registos históricos. Daí que se tenha vindo a eliminar esse local. Em 1998 o Nevio Zitellini, do Instituto de Geologia Marinha de Bolonha, descobriu uma falha geológica a 100 quilómetros a oeste do Cabo de São Vicente, a que chamou do"Marquês de Pombal" num artigo publicado em 2001, é essa a localização provável da origem do terramoto de Lisboa!

-O problema é que essa falha, com 60 quilómetros de comprimento, não chegava para gerar um sismo de 8,7 de magnitude, doutora. Mesmo se se rompesse todo o segmento do Marquês de Pombal, a energia libertada corresponderia a metade da do sismo de 1755. Há de certeza uma segunda localização! O Zitellini descobriu uma origem dupla para o terramoto: para ele, deveu-se a uma rutura da Falha do Marquês de Pombal, em conjugação com o rompimento da crosta ao longo do banco do Guadalquivir.

Entrando nessa altura o doutor Guedes, cientista do Instituto, ajudou ainda mais à confusão, introduzindo nova teoria:

-Meus amigos, somos cientistas ou charlatães? É claro que o epicentro foi no arco de Gibraltar! Ali é uma zona de subducção ativa, na qual um bloco de uma placa velha mergulha e, ao descer no manto, deforma a superfície. Acreditem, foi aí que nasceu o terramoto de 1755!

Montada a apresentação, na tarde de 31 de Outubro lá apresentaram o trabalho, no CCB. Bárbara, a filha de Ana Maria compareceu, sentando-se contudo longe de Tomás, que a aborrecia com as suas teorias sobre sismos e tsunamis. A sala estava composta, poucos minutos antes de subir ao palco, o telemóvel de Ana começou a tocar, interrompendo a conversa com o prof. Jenkins, de Liverpool, uma autoridade mundial em tsunamis e orador essa tarde. Como não parasse o toque, do Instituto, por sinal, acabou desligando o telemóvel.

A comunicação foi muito aplaudida, se bem que as várias teses de epicentro permanecessem irredutíveis. Eram oito horas, e dali seguiriam para o jantar com os convidados, nas Docas. Chuvosa, a noite de Lisboa tinha um ar pesado e uma claridade esquisita, mais chuva para o resto da semana, pensou Ana Maria, enquanto Tomás colocava um chapéu que o fazia lembrar o Professor Pardal. Só chegados às Docas voltou a ligar o telemóvel. O Tejo estava revolto, Procurou uma zona abrigada, e restabelecida a ligação, vários SMS foram despejados em cadeia, todos iguais:” Liga Instituto. Urgente

-Nem a esta hora me largam! -protestou, ligando para o Instituto, estavam lá o Guedes e o Vasco, porque lhe ligariam a essa hora, e em véspera de feriado? Estabelecida a ligação, o Guedes, agitado, e a arfar, mal deixava entender o que dizia:

-Ana, onde estás?! Temos um caso grave, muito grave! O sismógrafo de Mafra indica atividade sísmica muito alta com origem em El Hierro, nas Canárias. Para cima de 8.5! É uma catástrofe! E foi dado um alerta de tsunami, em 90 minutos as ondas podem atingir a costa portuguesa…Sem bateria, a chamada caiu, deixando Ana Maria atónita, com Tomás e Bárbara a caminho do jantar, noutro carro.

Olhando para o Tejo, a ondulação era forte agora, galgando a margem junto ao Padrão dos Descobrimentos, invasivo, um abalo fortíssimo fez tombar um candeeiro a seu lado, abrindo uma racha no solo. Uma sirene do INEM ecoou ao longe, a onda teria chegado a terra firme. Correu para o lado da estrada, frente aos Jerónimos vários carros jaziam esmagados pelo desabar de alguns prédios mais antigos. Mastodôntica, uma vaga com mais de seis metros recortava-se por trás da Ponte sobre o Tejo, e o cacilheiro para Porto Brandão em segundos sugado, como casca de noz.

Em pânico, Ana fugiu para a zona alta, a onda assassina e inesperada engolia já Alcântara e as Docas e contentores desgovernados entravam pelas ruas, arrastados pela força das águas. Correu, sem olhar para trás, como muitos outros, apanhados no local, até que furiosa e prepotente a onda os envolveu, trezentos anos depois, a Velha Senhora voltava a Lisboa, invasiva e diluviana. Presa num varandim, a pasta de Ana Maria ficou ondulando, com o powerpoint definitivamente desatualizado.

terça-feira, 28 de outubro de 2014

O cobrador de impostos



Depois das obras na alcáçova e do novo foral que Fernão de Pina lesto compilara, mandou D. Manuel que os mouros forros de Colares zelassem pelas almedinas do castelo e pela solidez das torres. Várias vezes percorrera as várzeas, distribuindo benesses, esmoler e generoso, naquele Outono de 1514, porém, a vila achava-se enfadada com El-Rei. Alvarás régios mandavam agravar os impostos, e, frente ao Paço, Damião Nunes, o oficial da jugada, anunciava as más novas, e advertia os vizinhos, na altura em que Gonçalo Anes chegava, após entregar queijadas e leite coado em casa do almoxarife:

-Homens bons de Sintra, é mister d’El-Rei em sua avisada governança que quem lavre a terra com junta de bois, na vila ou no termo, pague dezasseis alqueires de pão, oito de trigo e oito de cevada. Quem só tenha um boi, pague porém oito alqueires de pão! -anunciou, lendo o edital ao povo, reunido no largo.

Gonçalo Anes e Nuno de Colares, donos de juntas de bois, torceram o nariz. Só na eira de Janas, ocupavam quatro animais, tentando contornar a injusta jugada ainda reclamaram, antes de seguir para o Arraçário:

-Então e quem lavrar com enxada só, e sem alimária?

-Quem só usar enxada, fica isento. Os demais, deverão acertar comigo o pagamento em trigo, de 15 de Agosto até ao Natal. O celeiro d’el-rei estará aberto três dias por semana, lá me poderão encontrar! -ia para quatro anos que era oficial da jugada, e muito porfiara em fazendas, umas para el-rei, outras para si, dizia o povo à boca pequena, a fama de Damião já tivera melhores dias. E continuou:

-E dêem-se por bafejados, pois el-rei dispensa os da vila de pagar o mordomado, só os do termo serão submetidos ao tributo! –acrescentou. Gonçalo Anes coçou a cabeça, já muitas vezes caminhara para os armazéns reais a enchê-los de trigo. Uma injustiça, pensou.

-Vale-me este ano a safra do vinho ser fraca, quarenta almudes, que a seca foi muita.

-Já a mim me toca, e muito, tenho duzentos almudes, parece que se deve pagar antes do relego…-Nuno de Colares suspirou, tocando o sino na torre de S. Martinho, Damião Nunes continuou:

-Da colheita havida, há também que pagar socos da rainha, sob pena de não poderem aceder aos fornos reais, e ser o procurador do concelho punido. De tudo o que for aí moído, de moenda pagarão um quarto!

Mais vizinhos se juntaram. Era Novembro, mês de relego, e o vinho do rei teria primazia na venda, só podendo o povo vender o seu depois, sob pena de pesadas coimas. André Gonçalves, Almoxarife de Sintra e Juiz das Sisas e Coutadas de Colares, com 4800 reais de mantimento de ofício,chegou entretanto, a tempo de escutar Nuno de Colares:

-Pois não chegam a El-Rei as fazenda da Índia, e o trato com os marranos de Génova? Com tal canga, não pode o povo dar sustento a seus filhos, com o pouco que lavra nas terras e hortas.

-Antes o mar, ao menos para morrer nas costasda Guiné não se paga…

Retirando-se, Gonçalo Anes seguiu para os baixos de Oliva, magicando na forma de amaçiar o oficial da jugada, mandar-lhe-ia umas galinhas, a lembrar quanto o estimava…

-Da pesca também há mercê de pagar! –interrompeu André Gonçalves, metendo-se na conversa, e puxando da dignidade de almoxarife: -Se forem apanhadas dez pescadas, que se pague uma, quem não apanhar dez, ficará isento. Marisco e outros peixes, onze ceitis, pagos diretamente ao alcaide-mor. Para todo o concelho, fica também o dever de portagem aos oficiais régios, sob pena de confisco das mercadorias, e de acordo com o montante e categoria das mesmas. E que não haja maus intentos! Quem se conluiar para enganar, sofrerá degredo em Ceuta por dois anos!

-E quem mercadejar boi, porco, cabrito, escravo, ou outro animal, é mister pagar treze reais por cada peça! -rematou Damião,petulante.

Da Pêndoa chegaram entretanto Inês Pereira e Pêro Marques. Depois que casaram, mudaram para Sintra, onde Inês vida boa folgava, marido manso e lerdo, a bolsa farta, estava como queria. Alcovitando, Constança Pires correu a contar-lhe do rebuliço com a leitura do edital. Pêro Marques não sabia se era com ele, segurando a burra com as alfaces que ia vender na alpendrada. Interesseira, Inês insinuou-se a Damião Nunes, realçando o busto farto e alvo, que um oficial da jugada não era de desprezar:

-Senhor oficial, pois zelais pela fazenda de el-rei? Grande e nobre trabalho, o vosso, só alguém com muita sabedoria o poderia fazer!

Ruborizando, Damião agradeceu, derretido com as palavras de Inês, astuta que nem rato. Parando a leitura, saudou, gaguejando:

-Bons olhos vos vejam, senhora D. Inês. Exagerais, por certo….

Chegando-se a ele, Inês roçou-se, dengosa. Vendo o almoxarife a afastar-se, perguntou-lhe em voz baixa e cúmplice:

-Carecia de moer minha farinha. Em vosso moinho, se vos aprouver. Pobre e desvalida que sou, terei também de pagar de moenda um quarto…?

-Ora, ora, por quem sois. D. Inês. A vós, o quarto vos dou eu…

Já noite, o povo dispersou, enfadado com as novidades. Em Lisboa, na alcáçova do castelo de S. Jorge, el-rei perguntava a Gaspar Gonçalves se o vinho de Colares já fora vendido. Fossem os maravedis de Margão, a pimenta da Índia, ou o bom néctar de Colares, não podia esquecer os cofres que dele faziam poderoso, e por vezes até magnânimo.  

Verão Outonal

Ao contrário do costume, o Outono em Sintra chegara quente e estival, Gilberto pensara em ir de novo para o Algarve, mas a doença da mãe aconselhou a ficar por perto, há vinte anos que não passava uma temporada em Colares. Lá estavam ainda o Pomarinho, os patos no rio, o quiosque dos jornais e o Cantinho da Várzea. Os velhos plátanos subsistiam ainda, e Colares conservava o ar burguês e suave dos anos cinquenta, com chalés de onde se via que o dinheiro fugira já, pérgulas a carecer de pintura, aloés e sardinheiras crescendo selvagens nas quintas. A praia tinha um ar mais decadente, num amontoado branco de casas desordenadas, de várias épocas e gostos dissonantes, o pátio do Búzio deprimia pelo quintal sem jeito, que saudades lhe vieram do barracão do cinema. E do Quivuvi, do Casino, e da Concha, do Bibió decorado de bandejas, e do Xiripiti junto ao Neptuno. Sentiu nostalgia desses tempos, por os saber desaparecidos. Há muito veraneava noutras bandas, menos epidérmicas e com menos passado, aos filhos chamou a atenção o Maçãs, onde poderiam curtir sábados à noite.
Passados os cinquenta já, com uns calções verdes e panamá enterrado na cabeça, diária e religiosamente se entreteu numa ritual volta pela praia, depois de abastecer de notícias no quiosque. Familiar, o Luís Alberto, do Búzio, com décadas de praia, lá estava, junto às sapateiras e robalos, vizinho, o eléctrico de novo partia e chegava, rangendo como nos velhos tempos. Nunca mais nele andara, perdera a piada,  já não podia ir no estribo a roubar fruta.
A praia perdera carisma, plantada de prédios a lembrar Quarteira, até chineses havia, o vento, esse, continuava o mesmo. Em tempos jogara à bola no ringue, alguns amigos ainda por lá paravam, com barrigas de cerveja e carecas recentes, celebrando o passado com uma fresquinha a cada encontro: o Tavares vivia em Inglaterra, dois putos já casados, o Adriano em Janas, era bate-chapas, ele sumira uns bons anos, gestor numa empresa informática, nos anos das vacas gordas parara mais por Ibiza e pelo Algarve.
A casa de Colares levara obras, janelas, uma churrasqueira nova, pouco restava do alçado à Raul Lino construído pelo pai, memórias, sim, muitas, o mundo era outro, porém, os filhos quase adultos, os pêssegos e as pêras de vez sumidos, até o pão quente de Nafarros acabara. Como era uma aventura nesse tempo deixar Lisboa para dois meses em Colares, qual viagem ao interior profundo, levando cobertores, fogão, fazer compras na feira de S. Pedro e comer pão de Mafra a estalar. Era diferente agora, com romarias para o shopping, e a ditadura do tablet. "Tias" renitentes haviam descoberto o mercado de Almoçageme, aí, de novo seriam “madames” e veneradas, sem nada a ver com a vulgar caixa do supermercado. Como eram engraçadas, com as unhas pintadas, simulando saber escolher rabanetes e melões que os saloios, agora chamados de produtores biológicos, vendiam à beira da estrada. 
Fora por quinze dias, e, sinal dos tempos, trocara o lavagante pelos percebes, o James Marten’s pela cervejinha, de quando em quando uma salada de polvo acompanhava a fresquinha da tarde, os dias passaram entre a leitura e  passeios na Praia Grande. No fundo, vivia tranquilo. Cortara Cancún, o golfe e o resort, iam distantes os anos despreocupados, mas estava em casa, navegando num passado que nenhum spread aumentaria. Atrás da cinza, uma réstia de azul, afinal...