terça-feira, 28 de outubro de 2014

O cobrador de impostos



Depois das obras na alcáçova e do novo foral que Fernão de Pina lesto compilara, mandou D. Manuel que os mouros forros de Colares zelassem pelas almedinas do castelo e pela solidez das torres. Várias vezes percorrera as várzeas, distribuindo benesses, esmoler e generoso, naquele Outono de 1514, porém, a vila achava-se enfadada com El-Rei. Alvarás régios mandavam agravar os impostos, e, frente ao Paço, Damião Nunes, o oficial da jugada, anunciava as más novas, e advertia os vizinhos, na altura em que Gonçalo Anes chegava, após entregar queijadas e leite coado em casa do almoxarife:

-Homens bons de Sintra, é mister d’El-Rei em sua avisada governança que quem lavre a terra com junta de bois, na vila ou no termo, pague dezasseis alqueires de pão, oito de trigo e oito de cevada. Quem só tenha um boi, pague porém oito alqueires de pão! -anunciou, lendo o edital ao povo, reunido no largo.

Gonçalo Anes e Nuno de Colares, donos de juntas de bois, torceram o nariz. Só na eira de Janas, ocupavam quatro animais, tentando contornar a injusta jugada ainda reclamaram, antes de seguir para o Arraçário:

-Então e quem lavrar com enxada só, e sem alimária?

-Quem só usar enxada, fica isento. Os demais, deverão acertar comigo o pagamento em trigo, de 15 de Agosto até ao Natal. O celeiro d’el-rei estará aberto três dias por semana, lá me poderão encontrar! -ia para quatro anos que era oficial da jugada, e muito porfiara em fazendas, umas para el-rei, outras para si, dizia o povo à boca pequena, a fama de Damião já tivera melhores dias. E continuou:

-E dêem-se por bafejados, pois el-rei dispensa os da vila de pagar o mordomado, só os do termo serão submetidos ao tributo! –acrescentou. Gonçalo Anes coçou a cabeça, já muitas vezes caminhara para os armazéns reais a enchê-los de trigo. Uma injustiça, pensou.

-Vale-me este ano a safra do vinho ser fraca, quarenta almudes, que a seca foi muita.

-Já a mim me toca, e muito, tenho duzentos almudes, parece que se deve pagar antes do relego…-Nuno de Colares suspirou, tocando o sino na torre de S. Martinho, Damião Nunes continuou:

-Da colheita havida, há também que pagar socos da rainha, sob pena de não poderem aceder aos fornos reais, e ser o procurador do concelho punido. De tudo o que for aí moído, de moenda pagarão um quarto!

Mais vizinhos se juntaram. Era Novembro, mês de relego, e o vinho do rei teria primazia na venda, só podendo o povo vender o seu depois, sob pena de pesadas coimas. André Gonçalves, Almoxarife de Sintra e Juiz das Sisas e Coutadas de Colares, com 4800 reais de mantimento de ofício,chegou entretanto, a tempo de escutar Nuno de Colares:

-Pois não chegam a El-Rei as fazenda da Índia, e o trato com os marranos de Génova? Com tal canga, não pode o povo dar sustento a seus filhos, com o pouco que lavra nas terras e hortas.

-Antes o mar, ao menos para morrer nas costasda Guiné não se paga…

Retirando-se, Gonçalo Anes seguiu para os baixos de Oliva, magicando na forma de amaçiar o oficial da jugada, mandar-lhe-ia umas galinhas, a lembrar quanto o estimava…

-Da pesca também há mercê de pagar! –interrompeu André Gonçalves, metendo-se na conversa, e puxando da dignidade de almoxarife: -Se forem apanhadas dez pescadas, que se pague uma, quem não apanhar dez, ficará isento. Marisco e outros peixes, onze ceitis, pagos diretamente ao alcaide-mor. Para todo o concelho, fica também o dever de portagem aos oficiais régios, sob pena de confisco das mercadorias, e de acordo com o montante e categoria das mesmas. E que não haja maus intentos! Quem se conluiar para enganar, sofrerá degredo em Ceuta por dois anos!

-E quem mercadejar boi, porco, cabrito, escravo, ou outro animal, é mister pagar treze reais por cada peça! -rematou Damião,petulante.

Da Pêndoa chegaram entretanto Inês Pereira e Pêro Marques. Depois que casaram, mudaram para Sintra, onde Inês vida boa folgava, marido manso e lerdo, a bolsa farta, estava como queria. Alcovitando, Constança Pires correu a contar-lhe do rebuliço com a leitura do edital. Pêro Marques não sabia se era com ele, segurando a burra com as alfaces que ia vender na alpendrada. Interesseira, Inês insinuou-se a Damião Nunes, realçando o busto farto e alvo, que um oficial da jugada não era de desprezar:

-Senhor oficial, pois zelais pela fazenda de el-rei? Grande e nobre trabalho, o vosso, só alguém com muita sabedoria o poderia fazer!

Ruborizando, Damião agradeceu, derretido com as palavras de Inês, astuta que nem rato. Parando a leitura, saudou, gaguejando:

-Bons olhos vos vejam, senhora D. Inês. Exagerais, por certo….

Chegando-se a ele, Inês roçou-se, dengosa. Vendo o almoxarife a afastar-se, perguntou-lhe em voz baixa e cúmplice:

-Carecia de moer minha farinha. Em vosso moinho, se vos aprouver. Pobre e desvalida que sou, terei também de pagar de moenda um quarto…?

-Ora, ora, por quem sois. D. Inês. A vós, o quarto vos dou eu…

Já noite, o povo dispersou, enfadado com as novidades. Em Lisboa, na alcáçova do castelo de S. Jorge, el-rei perguntava a Gaspar Gonçalves se o vinho de Colares já fora vendido. Fossem os maravedis de Margão, a pimenta da Índia, ou o bom néctar de Colares, não podia esquecer os cofres que dele faziam poderoso, e por vezes até magnânimo.  

Sem comentários:

Enviar um comentário