Depois
das obras na alcáçova e do novo foral que Fernão de Pina lesto compilara, mandou D. Manuel que os mouros forros de Colares zelassem pelas almedinas
do castelo e pela solidez das torres. Várias vezes percorrera as várzeas,
distribuindo benesses, esmoler e generoso, naquele Outono de 1514, porém, a
vila achava-se enfadada com El-Rei. Alvarás régios mandavam agravar os impostos,
e, frente ao Paço, Damião Nunes, o oficial da jugada, anunciava as más novas, e
advertia os vizinhos, na altura em que Gonçalo Anes chegava, após entregar
queijadas e leite coado em casa do almoxarife:
-Homens bons de Sintra, é mister
d’El-Rei em sua avisada governança que quem lavre a terra com junta de bois, na
vila ou no termo, pague dezasseis alqueires de pão, oito de trigo e oito de
cevada. Quem só tenha um boi, pague porém oito alqueires de pão! -anunciou,
lendo o edital ao povo, reunido no largo.
Gonçalo
Anes e Nuno de Colares, donos de juntas de bois, torceram o nariz. Só na eira
de Janas, ocupavam quatro animais, tentando contornar a injusta jugada ainda
reclamaram, antes de seguir para o Arraçário:
-Então e quem lavrar com enxada só, e sem
alimária?
-Quem só usar enxada, fica isento. Os demais,
deverão acertar comigo o pagamento em trigo, de 15 de Agosto até ao Natal. O
celeiro d’el-rei estará aberto três dias por semana, lá me poderão encontrar! -ia
para quatro anos que era oficial da jugada, e muito porfiara em fazendas, umas
para el-rei, outras para si, dizia o povo à boca pequena, a fama de Damião já
tivera melhores dias. E continuou:
-E dêem-se por bafejados, pois
el-rei dispensa os da vila de pagar o mordomado, só os do termo serão
submetidos ao tributo! –acrescentou. Gonçalo Anes coçou a
cabeça, já muitas vezes caminhara para os armazéns reais a enchê-los de trigo.
Uma injustiça, pensou.
-Vale-me este ano a safra do vinho ser fraca,
quarenta almudes, que a seca foi muita.
-Já a mim me toca, e muito, tenho
duzentos almudes, parece que se deve pagar antes do relego…-Nuno
de Colares suspirou, tocando o sino na torre de S. Martinho, Damião Nunes
continuou:
-Da colheita havida, há também que pagar
socos da rainha, sob pena de não poderem aceder aos fornos reais, e ser o
procurador do concelho punido. De tudo o que for aí moído, de moenda pagarão um
quarto!
Mais
vizinhos se juntaram. Era Novembro, mês de relego, e o vinho do rei teria
primazia na venda, só podendo o povo vender o seu depois, sob pena de pesadas coimas.
André Gonçalves, Almoxarife de Sintra e Juiz das Sisas e Coutadas de Colares,
com 4800 reais de mantimento de ofício,chegou entretanto, a tempo de escutar
Nuno de Colares:
-Pois não chegam a El-Rei as
fazenda da Índia, e o trato com os marranos de Génova? Com tal canga, não pode
o povo dar sustento a seus filhos, com o pouco que lavra nas terras e hortas.
-Antes o mar, ao menos para
morrer nas costasda Guiné não se paga…
Retirando-se,
Gonçalo Anes seguiu para os baixos de Oliva, magicando na forma de amaçiar o
oficial da jugada, mandar-lhe-ia umas galinhas, a lembrar quanto o estimava…
-Da pesca também há mercê de
pagar! –interrompeu André Gonçalves, metendo-se na conversa,
e puxando da dignidade de almoxarife: -Se
forem apanhadas dez pescadas, que se pague uma, quem não apanhar dez, ficará
isento. Marisco e outros peixes, onze ceitis, pagos diretamente ao alcaide-mor.
Para todo o concelho, fica também o dever de portagem aos oficiais régios, sob
pena de confisco das mercadorias, e de acordo com o montante e categoria das
mesmas. E que não haja maus intentos! Quem se conluiar para enganar, sofrerá
degredo em Ceuta por dois anos!
-E quem mercadejar boi, porco,
cabrito, escravo, ou outro animal, é mister pagar treze reais por cada peça! -rematou
Damião,petulante.
Da
Pêndoa chegaram entretanto Inês Pereira e Pêro Marques. Depois que casaram,
mudaram para Sintra, onde Inês vida boa folgava, marido manso e lerdo, a bolsa
farta, estava como queria. Alcovitando, Constança Pires correu a contar-lhe do
rebuliço com a leitura do edital. Pêro Marques não sabia se era com ele,
segurando a burra com as alfaces que ia vender na alpendrada. Interesseira,
Inês insinuou-se a Damião Nunes, realçando o busto farto e alvo, que um oficial
da jugada não era de desprezar:
-Senhor oficial, pois zelais pela
fazenda de el-rei? Grande e nobre trabalho, o vosso, só alguém com muita sabedoria
o poderia fazer!
Ruborizando,
Damião agradeceu, derretido com as palavras de Inês, astuta que nem rato.
Parando a leitura, saudou, gaguejando:
-Bons olhos vos vejam, senhora D.
Inês. Exagerais, por certo….
Chegando-se
a ele, Inês roçou-se, dengosa. Vendo o almoxarife a afastar-se, perguntou-lhe
em voz baixa e cúmplice:
-Carecia de moer minha farinha. Em vosso
moinho, se vos aprouver. Pobre e desvalida que sou, terei também de pagar de
moenda um quarto…?
-Ora, ora, por quem sois. D.
Inês. A vós, o quarto vos dou eu…
Já
noite, o povo dispersou, enfadado com as novidades. Em Lisboa, na alcáçova do
castelo de S. Jorge, el-rei perguntava a Gaspar Gonçalves se o vinho de Colares
já fora vendido. Fossem os maravedis de Margão, a pimenta da Índia, ou o bom
néctar de Colares, não podia esquecer os cofres que dele faziam poderoso, e por
vezes até magnânimo.
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