sábado, 11 de outubro de 2014

Cavadelas e Minhocas





Ia um reboliço na Praia das Maçãs, a retroescavadora tirava terras para abrir as fundações quando chocou em algo compacto perto do tholos romano. Obtida a licença para a moradia, depois de três anos no Parque Natural, finalmente o Alves arrancava com a obra, mas logo ao segundo dia a máquina deparava-se com um obstáculo. Destapada a terra com enxadas, ficaram à vista três colunas de pedra com inscrições nos pedestais, atraindo o pessoal da praia.

As colunas tinham gravadas figuras de mulher vestindo uma túnica, de braços abertos para o céu e um halo com ramificações em cima, como se fosse um sol ou uma medusa, arte romana, pareceu ao João Rodrigues, um estudante de História que passou na altura no local. Pensativo, o Alves anteviu chatices, se aparecesse alguém da Câmara por certo pararia a obra, por causa dos achados, bem vira o que acontecera em Almornos, com a casa da filha, três anos parada por causa de uma lápide que o lunático do arqueólogo considerou valiosa, para ele boa para uma mesa na churrasqueira, isso sim. Continuando a escavar, mais colunas surgiram, coisa antiga, alvitrou o Alberto, palitando os dentes. Logo mais artefactos, ânforas, a cada cavadela, uma minhoca. Preocupado, o Alves achou por bem guardar os achados antes que a notícia se espalhasse, e fez correr que ia levar tudo para o museu, para estudo, desviou os populares para uma rodada no Loureiro e mandou o Crispim e o Zé Luís, longe dos mirones, carregar as malditas pedras para uma carrinha. Meia hora e três imperiais depois, o tema de conversa era já o Benfica, o Rio Ave ia levar cinco secos, prometia o Alves, despachando os tremoços.

No local, com as máquinas paradas e o buraco escavado, passou entretanto a GNR a perguntar pela licença. Faltava a placa com a identificação da obra, dizia um guarda com cara de reprovação, se não fosse afixada seriam quinhentos euros. O Crispim acatou, com o patrão no bar e as colunas na carrinha, tapadas com uma lona. Ah, e o capacete, sempre na cabeça, frisou o agente, antes de seguir para as Azenhas.

Retornado à obra, com os outros já dispersados, o Alves continuou a escavação, aparentemente sem mais sobressaltos, havia que dar fogo à peça, executar as sapatas e betonar rapidamente, diligentemente as colunas foram enviadas para o vazadouro, na Amora, onde seriam enterradas e cobertas de entulho. Como podia alguém dar importância aquilo, ainda pensou o Alves, com ar de reprovação.

No dia seguinte, radioso, as máquinas avançaram, o Alberto, passando a apanhar sol, logo abordou o Alves:

-Então António, chegaste a saber o que eram aquelas pedras? Se calhar pertenciam àquela coisa do tôlo ou tólo, como chamam ao matagal acolá, os gajos lá de Odrinhas andam sempre à procura de lixo desse, ainda se viessem comer um robalo ao meu restaurante... - e partiu na direção do Barmácia, ganhara uma aposta ao Luís, com o resultado do Porto, e ia cobrar o seu tinto, que de manhã é que se começa o dia.

Pelo sim pelo não, o Alves mandou vedar a obra, se aparecesse mais alguma coisa ninguém chegaria a aperceber-se, arriscava três anos com o processo parado num qualquer gabinete, o banco e os juros não iriam esperar e nunca ninguém se governara com o tal tholos.

Entrementes, no museu de Odrinhas, Maria João, mestranda de Arqueologia, debruçava-se sobre uns manuscritos de Félix Alves Pereira. Há meses que analisava estudos seus, dedicados à presença romana na Praia das Maçãs, aventara-se mesmo a existência de um templo no alto da Vigia. O director do museu, o dr. Cardim, também tinha obra sobre o assunto, Maria João cruzava os documentos e ia juntando o puzzle. Nessa tarde, em grande excitação, entrou no gabinete do dr. Cardim, que trincava uma maçã reineta, e comunicou-lhe a descoberta:

-Professor, ou me engano muito, ou a localização do templo do sol não é bem na Vigia, como vaticinou o Francisco de Holanda, mas do lado oposto, junto ao atual mercado, veja aqui, os pontos cardeais estão mal assinalados! -e mostrou-lhe um papel vegetal onde desenhara localizações a partir dos estudos de Alves Pereira. Cardim poisou a maçã, leu o papel e ficou de olhos arregalados, podiam estar à beira de descobrir o lendário templo da Praia das Maçãs, o tholos era a ponta do icebergue.

-Veja professor, o Francisco de Holanda dizia que o templo seria um recinto circular implantado sobre uma plataforma de terra, sobre a qual se distribuíam 16 aras prismáticas organizadas em espaços regulares e com um disco solar raiado ao centro -continuou a investigadora - Porém, não é de excluir a hipótese de o desenho ser apenas aproximativo: as aras poderiam ser simples bases de uma colunata ou de estátuas, e em número de doze, o que permitiria supor o carácter astrológico do santuário. E repare, diz-se que era junto ao mar, mas o mar nessa altura chegava ao local onde hoje fica o tholos, o assoreamento pode explicar que esteja hoje onde está, aconteceu o mesmo à Torre de Belém!

-Maria João, os meus parabéns, creia-me, esta descoberta vai ser mais importante que os fósseis de Foz Côa! –gritou o dr. Cardim, parecendo uma criança, com o casaco já no braço, a caminho da Praia das Maçãs.

Nos Foros da Amora, entre carroçarias podres e terras, as colunas do Alves descansam entretanto incógnitas por mais alguns anos, quando talvez voltem a ser descobertas e, quem sabe, lançadas ao mar, para não prejudicar alguma construção. 

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