Ia
um reboliço na Praia das Maçãs, a retroescavadora tirava terras para abrir as
fundações quando chocou em algo compacto perto do tholos romano. Obtida a licença para a moradia, depois de três anos
no Parque Natural, finalmente o Alves arrancava com a obra, mas logo ao segundo
dia a máquina deparava-se com um obstáculo. Destapada a terra com enxadas,
ficaram à vista três colunas de pedra com inscrições nos pedestais, atraindo o
pessoal da praia.
As
colunas tinham gravadas figuras de mulher vestindo uma túnica, de braços
abertos para o céu e um halo com ramificações em cima, como se fosse um sol ou
uma medusa, arte romana, pareceu ao João Rodrigues, um estudante de História
que passou na altura no local. Pensativo, o Alves anteviu chatices, se
aparecesse alguém da Câmara por certo pararia a obra, por causa dos achados,
bem vira o que acontecera em Almornos, com a casa da filha, três anos parada
por causa de uma lápide que o lunático do arqueólogo considerou valiosa, para
ele boa para uma mesa na churrasqueira, isso sim. Continuando a escavar, mais
colunas surgiram, coisa antiga, alvitrou o Alberto, palitando os dentes. Logo
mais artefactos, ânforas, a cada cavadela, uma minhoca. Preocupado, o Alves
achou por bem guardar os achados antes que a notícia se espalhasse, e fez
correr que ia levar tudo para o museu, para estudo, desviou os populares para
uma rodada no Loureiro e mandou o Crispim e o Zé Luís, longe dos mirones,
carregar as malditas pedras para uma carrinha. Meia hora e três imperiais
depois, o tema de conversa era já o Benfica, o Rio Ave ia levar cinco secos,
prometia o Alves, despachando os tremoços.
No
local, com as máquinas paradas e o buraco escavado, passou entretanto a GNR a
perguntar pela licença. Faltava a placa com a identificação da obra, dizia um
guarda com cara de reprovação, se não fosse afixada seriam quinhentos euros. O
Crispim acatou, com o patrão no bar e as colunas na carrinha, tapadas com uma
lona. Ah, e o capacete, sempre na cabeça, frisou o agente, antes de seguir para
as Azenhas.
Retornado
à obra, com os outros já dispersados, o Alves continuou a escavação,
aparentemente sem mais sobressaltos, havia que dar fogo à peça, executar as
sapatas e betonar rapidamente, diligentemente as colunas foram enviadas para o
vazadouro, na Amora, onde seriam enterradas e cobertas de entulho. Como podia
alguém dar importância aquilo, ainda pensou o Alves, com ar de reprovação.
No
dia seguinte, radioso, as máquinas avançaram, o Alberto, passando a apanhar sol,
logo abordou o Alves:
-Então António, chegaste a saber o que eram
aquelas pedras? Se calhar pertenciam àquela coisa do tôlo ou tólo, como chamam
ao matagal acolá, os gajos lá de Odrinhas andam sempre à procura de lixo desse,
ainda se viessem comer um robalo ao meu restaurante... - e partiu na
direção do Barmácia, ganhara uma
aposta ao Luís, com o resultado do Porto, e ia cobrar o seu tinto, que de manhã
é que se começa o dia.
Pelo
sim pelo não, o Alves mandou vedar a obra, se aparecesse mais alguma coisa
ninguém chegaria a aperceber-se, arriscava três anos com o processo parado num
qualquer gabinete, o banco e os juros não iriam esperar e nunca ninguém se
governara com o tal tholos.
Entrementes,
no museu de Odrinhas, Maria João, mestranda de Arqueologia, debruçava-se sobre
uns manuscritos de Félix Alves Pereira. Há meses que analisava estudos seus,
dedicados à presença romana na Praia das Maçãs, aventara-se mesmo a existência
de um templo no alto da Vigia. O director do museu, o dr. Cardim, também tinha
obra sobre o assunto, Maria João cruzava os documentos e ia juntando o puzzle. Nessa tarde, em grande excitação,
entrou no gabinete do dr. Cardim, que trincava uma maçã reineta, e
comunicou-lhe a descoberta:
-Professor, ou me engano muito, ou a
localização do templo do sol não é bem na Vigia, como vaticinou o Francisco de
Holanda, mas do lado oposto, junto ao atual mercado, veja aqui, os pontos
cardeais estão mal assinalados! -e mostrou-lhe um papel vegetal onde
desenhara localizações a partir dos estudos de Alves Pereira. Cardim poisou a
maçã, leu o papel e ficou de olhos arregalados, podiam estar à beira de
descobrir o lendário templo da Praia das Maçãs, o tholos era a ponta do icebergue.
-Veja professor, o Francisco de Holanda dizia
que o templo seria um recinto circular implantado sobre uma plataforma de
terra, sobre a qual se distribuíam 16 aras prismáticas organizadas em espaços
regulares e com um disco solar raiado ao centro -continuou a investigadora
- Porém, não é de excluir a hipótese de o
desenho ser apenas aproximativo: as aras poderiam ser simples bases de uma
colunata ou de estátuas, e em número de doze, o que permitiria supor o carácter
astrológico do santuário. E repare, diz-se que era junto ao mar, mas o mar
nessa altura chegava ao local onde hoje fica o tholos, o assoreamento pode
explicar que esteja hoje onde está, aconteceu o mesmo à Torre de Belém!
-Maria João, os meus parabéns, creia-me, esta
descoberta vai ser mais importante que os fósseis de Foz Côa! –gritou o dr.
Cardim, parecendo uma criança, com o casaco já no braço, a caminho da Praia das
Maçãs.
Nos
Foros da Amora, entre carroçarias podres e terras, as colunas do Alves
descansam entretanto incógnitas por mais alguns anos, quando talvez voltem a
ser descobertas e, quem sabe, lançadas ao mar, para não prejudicar alguma
construção.
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