O Douglas DC-3
proveniente de Casablanca aterrou era já noite na Granja do Marquês. Fugindo da
barbárie nazi, Ilse Lund e Victor Lazlo logravam escapar do major Strasser, com
o apoio de Rick e a complacência do capitão Renault. Victor, chefe da
resistência checa no exílio, esperaria em Portugal o necessário visto para a
América, a partir de onde reorganizaria a oposição à ocupação nazi.
No aeródromo, em
Sintra, aguardava-os Mário Soares, destacado pelo sector intelectual do MUD
para os acompanhar enquanto não obtivessem o almejado visto. Conduzindo um Ford
de 1935, Mário levou-os para Sintra, onde os alojou no Hotel Netto, sob o falso
nome de Walinski, polacos de visita a Elieser Kamenesky, o ator russo que
entrara no Pátio das Cantigas. A estadia seria de duas semanas e Soares o
elemento de ligação.
No dia seguinte, já
acompanhado pela noiva, a jovem Maria Barroso, levou-os a conhecer o Estoril e
a costa. Mais faladora, Ilse interessou-se pelo português:
-Já alguma vez esteve
em Paris, Mário?
-Nunca, miss Ilse,
embora tenha a maior paixão pelos escritores franceses. O Anatole France, o
Malraux, que é nosso camarada sabia…-comentou, num francês arrevesado, línguas
não eram o seu forte.
-Ah Paris... -suspirou,
transportando-se para as recordações duma existência curta, mas cheia de
desencontros. Em Paris fora feliz com Rick, e aí o perdera, em Casablanca de
novo a vida os cruzara, mas sem voltar a juntar.
Mário era um idealista.
Recrutado para a célula intelectual dos comunistas, os contactos com a
resistência no exterior eram-lhe familiares, tinha como controleiro o seu
professor de geografia no Colégio Moderno, o circunspecto Álvaro Cunhal.
Curioso, sondou Victor sobre o curso da guerra. Subitamente desperto, o checo
ganhou enfim interesse na conversa:
-A Résistance está
muito activa, Mário, os partisans estão espalhados por todo lado e muitos
patriotas lutam contra os ocupantes. Vichy, creio, estará por dias. Em Lyon a
propaganda aumentou desde que mataram o Marc Bloch, sabia?
-Quando a guerra
acabar, também Salazar será afastado, Victor. Ele faz–se passar por neutro, mas
é um germanófilo convicto. Lisboa está infestada de alemães, e você é um alvo a
abater, tem de se resguardar. Não aconselho que saiam de Sintra até chegarem os
papéis! –recomendou.
Os dias seguintes foram
descontraídos. De manhã, passeio até Seteais ou pela serra, pela tarde, ler e
escrever cartas, sempre com o pensamento nos camaradas em perigo, em Praga e em
toda a Checoslováquia. Vaclav fora capturado, e internado em Teresin, muitos
estavam na clandestinidade ou em parte
incerta.
Certa manhã, duas
semanas passadas desde a chegada, ao descer para o pequeno-almoço Ilse reparou
em dois vultos com malas de viagem falando inglês com o recepcionista do Netto.
Um, alto, com uma gabardina branca e chapéu preto, o outro, um negro, exibindo
reservas para o hotel. Sentiu um frémito quando reconheceu as personagens: eram
Rick e Sam, o pianista do Rick’s, em Casablanca, logo correndo para eles com
incontida alegria. Surpreendido ao vê-la, o negro pôs um sorriso franco e
sonoro:
-Por aqui, miss Ilse?
Gosh, como o mundo é pequeno! -saudou sorridente o velho Sam.
-Que fazem aqui, quero
saber tudo! -Ilsa ganhou um ânimo jovial ao reencontrar quem nunca quis perder.
Meio retraído, Rick sondou-a:
- E… Victor…?
-Está no quarto,
escrevendo. Mas, digam-me, o que fazem aqui, na Europa?
Antes que Rick lhe
respondesse, o pianista adiantou as novidades:
-Mr.Rick vendeu o café,
miss Ilse, vamos a caminho de França. O capitão Renault foi colocado em
Marselha, e convidou-nos para abrir lá um casino. Depois da guerra acabar, vai
ser o nosso novo sócio.
-Que bom para
vocês…-comentou Ilse, ainda surpreso, Rick estava parco em palavras. De novo o
destino os juntava e logo iria separar, nunca fruindo senão breves momentos de
felicidade.
Sabedor da chegada dos
americanos, Victor desceu a cumprimentar os amigos, com destino oposto ao seu.
Nessa noite, jantaram no salão do Netto. Quatro vidas diferentes e
desencontradas numa Europa destroçada, reuniam-se numa bela e serena vila
portuguesa, para quem a guerra era sobretudo a praga do racionamento. Depois do
jantar, Victor recebeu uma chamada de Mário e premonitório, Sam levantou-se
para fumar um cigarro, deixando Rick e Ilse a sós. Na varanda do hotel, com
vista para o castelo mouro, com as chaminés alvas do palácio mesmo ao lado,
deixaram-se ficar em silêncio por momentos, vendo esvoaçar a baforada do
cigarro na noite fresca. Passada alguma hesitação, Ilse decidiu-se a falar:
-Rick, eu….
-Palavras não alterarão
nada, Ilse –interrompeu o americano, pondo-lhe um dedo nos lábios. -Victor
precisa de ti, e eu nunca te poderei dar a felicidade que mereces. Somos
pessoas de mundos diferentes, e hoje não pertenço a nenhum.
Terminado o cigarro,
Rick saiu a deambular sem rumo, a noite estava amena mas brumosa. Acabrunhada,
Ilse passou ao salão, onde entretanto Sam descobrira um piano velho.
Instintivamente, agarrou-o pelo braço e fez-lhe um pedido:
-Toca, Sam.Toca “As
time goes by”….
O pianista hesitou, mas
anuiu, puxou do banco, e uma vez mais a nostálgica melodia ecoou no salão do
Hotel Netto. Definitivamente, seguiriam o seu rumo.
Três dias depois, Mário
e Maria levaram Ilse e Victor ao aeródromo, a caminho da América, enquanto no
mesmo dia Rick e Sam voaram para o sul de França, ao encontro do novo negócio.
A guerra acabou e
Victor Lazlo finalmente voltou a Praga, mas novo percalço o esperaria. Estaline
substituíra os anteriores ocupantes por novos da sua confiança, adiando por
vários anos a esperança na liberdade. Acabou preso, e morreu em 1950,
amargurado e sem ver o seu país livre. Ilse foi para a América, então, e
dedicou-se a escrever livros para crianças. Rick e Sam, depois de uns anos em
Marselha, instalaram-se em Cuba, e lá abriram um casino, onde pontificava um
cliente admirador de Sam, um tal Ernest Hemingway. Amargurado e refém do
álcool, Rick acabou vítima de cirrose, por altura da revolução cubana.
Por cá, Mário e Maria
casaram, e no fim da guerra ele acabou por se afastar dos camaradas, encetando
uma via política reformista e sempre contra Salazar. Ainda hoje, na sua casa em
Nafarros, entre centenas de livros e quadros, uma foto emoldurada de Victor e
Ilse recorda os saudosos compagnons de route de passagem por um país pardacento
no remoto ano de 1943.
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