Poeirento e ruidoso,
assim achou Lady Jackson o tal Larmanjat, no qual embarcou em visita a Sintra.
A viagem duraria duas horas, com paragem para descanso e abastecimento de água,
550 reis o preço do bilhete na 1ª classe. Ideia de Saldanha, que vira algo
parecido em França e decidiu introduzi-lo por cá.
Catherine, viúva de Sir George Jackson ia à descoberta da
fair Lusitania, Maio era o melhor
mês, por causa do calor, recomendara-lhe em Paris o seu editor.À partida de
Lisboa, observou os passageiros da primeira classe:Mr. Galway, botânico de
Durham, Cosette Mignon, uma corista francesa e o seu acompanhante, M.Vendôme,
um médico ainda jovem, Gregório de Almeida, com consultório em Sintra, segundo
apurou, e os príncipes Cyrllovitch, Vladimir e Maria, seriam hóspedes da
condessa d’Edla no seu chalé. Uma carruagem fora por D. Fernando posta à sua
disposição em Lisboa, mas dispensaram, curiosos por conhecer aquela maravilha
do progresso. A outra carruagem transportava os criados, colarejas, e soldados
aboletados no Paço de Sintra, um quanto receosos da máquina infernal.
Remetida a criada
para a 2ª classe, Lady Jackson foi metendo conversa com os demais. O cheiro do
perfume barato de mademoiselle
Cosette arrancou-lhe um sorriso amarelado, o acompanhante segurava-lhe a mão, mas
mais parecia pai dela que marido, uma amásia, por certo. Já o médico,
pareceu-lhe simpático, ultimava o novo consultório, nem sempre os doentes eram
abastados, umas galinhas para canja e couves de Almargem compensariam nos
primeiros tempos. Com os príncipes pouco falou, não percebiam nenhuma língua
civilizada, uma vénia discreta e pouco mais. O mais falador era Mr.Galway, de
visita ao wonderful palace do seu
conterrâneo, Mr. Cook, visconde de Monserrate, a fama dos jardins, mais belos
que os da Babilónia, tiravam-no de Durham, aventurando-se nos confins da
Europa. Era um fala-barato, com um nariz avermelhado rematado por lunetas
redondas.
O countryside era gorgeous, cheio de vinhas e pomares, paisanos montados em burros e
mulheres trabalhando no campo, uma estrada esburacada ligava a capital ao resort, famoso depois que o rei-viúvo e
a morganática condessa lá passaram a viver durante parte do ano. Ao fim de uma
hora de viagem, a primeira paragem, num sítio poeirento chamado Porcalhota,
apeando-se para uma pausa de meia hora. Catherine chamou Maude, a criada
inglesa, e saindo por uns minutos, tomou um deslavado capilé que aguadeiros
vendiam, enquanto campónios acorriam com cestos de vime e atoalhados, queijadas
e fruta fresca. Os demais também saíram a refrescar-se um pouco, uma hora mais
e chegariam, felizmente Sintra era fresca à noite, haviam dito em Lisboa.
Regressados à
carruagem, só M. Vendôme tardava, a comprar fruta para o seu petit chou. Mr. Galway comprou um cesto
de vime a um camponês, muito étnico, segundo comentou, transportando-o de
imediato para a carruagem. Ao voltar ao seu lugar, a princesa Cyrllovitch,
pareceu irritada, chamando pelo criado, que seguia na 2ª classe. Depois de
alguma agitação, que atrasou a saída, soube-se que desaparecera a gargantilha
da princesa, trazida para a receção no Chalet da Pena. Chocado, Mr. Galway
aproximou-se de Lady Jackson, limpando o suor que lhe escorria pela cara:
-Que
coisa horrível! Como é possível numa carruagem onde apenas viajam cavalheiros e
pessoas de bem acontecer uma coisa destas? Isto é pior que Constantinopla, I
say!
Catherine
aproximou-se da princesa, que tagarelava em russo, enquanto Cosette e M.
Vendôme tentavam reconstituir os passos dos passageiros depois da paragem. A
não ser que algum larápio tivesse vindo de fora, ou da 2ª classe, de cuja porta
o revisor nunca saíra, só entre eles poderia estar o ladrão. Intrigada,
perguntou ao médico se dera por algo, mas este, com um ar sonâmbulo e enterrado
num tratado de farmacopeia, nada vira, só queria era chegar a Sintra, que o burro
para o Arraçário ainda levaria meia hora. Lady Jackson reparou contudo que Mr.
Galway tentava encobrir com as pernas o cesto de vime comprado momentos antes,
e que parecia nervoso.
-Mr. Galway, está com medo que lhe roubem alguma preciosidade egípcia? -ironizou,
sagaz.
-Well, eu…, não, não, Lady Jackson, foi lapso dos seus olhos, por certo,
a claridade destes países do Sul altera a sensibilidade da vista, sabe, eu…
-Está
assim porque o senhor roubou as jóias da princesa, n’ést-ce pas? -atalhou
M.Vendôme de rompante, apontando-lhe a bengala e encostando-o contra a janela.
-What? How dare
you!- Galway ruborizou, visivelmente nervoso.
-Un moment! Je suis Claude
Vendôme, da polícia francesa, messieurs- apresentou-se, tirando o chapéu- e
esta é mademoiselle Nadine, minha
colaboradora. Este senhor frente a vós é nada mais nada menos que Walter
Pickwick, um conhecido ladrão de joias inglês. Desde Paris que lhe vimos no
rasto!
Surpresos, todos
pasmaram, e até o Dr. Gregório, antes absorto, parou a leitura do compêndio.
Parecia um teatro da R. dos Condes, pensou. Vendôme pegou no cesto de vime e
abrindo-o, no meio das camisas de Galway, aliás Pickwick, lá estava a valiosa gargantilha.
A princesa suspirou, enquanto o criado do príncipe Cyrllovitch de imediato o
imobilizou contra a parede.
-Mas
como pôde ter ocorrido isto, caro senhor? -perguntou o
príncipe Vladimir, num francês irreconhecível - se todos saímos ao mesmo tempo da carruagem?
-Aí
é que está, Excelência. Quando saímos, vi que discretamente o senhor Galway se
deixou ficar para trás, e num ápice sacou da joia e lançou-a pela janela, para
o descampado no lado oposto ao da gare. Uma vez lá fora, comprou um cesto,
recolheu a joia discretamente, e entrou ao mesmo tempo que os outros com o
souvenir na mão, dando a ilusão de ter estado sempre com o grupo. Ninguém
suspeitaria! Ele sabia da visita a Sintra dos príncipes, e é conhecida a
riqueza das joias da princesa, a suposta amizade com messieur le vicont du
Monserrate afastaria qualquer suspeita sobre si!
-Mas
diga-me, senhor Vendôme, e como soube que ele tinha a joia com ele? -questionou
Lady Jackson.
-Quando
saímos, segui-o, simulando ir comprar fruta para a Cosette- alias Nadine- e
vi-o recolher a gargantilha e ainda ter tempo de tomar um capilé de limão com
os outros. Voilá!
-Fruta
que não chegou a comprar, pois não, senhor Vendôme? – perspicaz, Lady Jackson também desconfiara de
Vendôme, pois a dita fruta nunca entrou na carruagem. Era ela quem devia estar
na polícia, pensou.
Chegados a Sintra,
onde D. Fernando e a condessa d’Edla aguardavam os príncipes na estação, Pickwick,
foi conduzido à cadeia. Mais tarde seria escoltado para Lisboa, e para Paris
depois, levado por Vendôme e Nadine. Passadas as peripécias, Lady Jackson lá se
deleitou com Sintra e seus pitorescos vales. Mais tarde deixaria as suas impressões
num livro de viagens que o seu editor entregou para traduzir a um tal Camilo
Castelo Branco. Gregório de Almeida viria a ser um dos mais respeitados médicos
de Sintra, pai dos pobres e filantropo. O Larmanjat, esse, duraria ainda mais
doze anos, rasgando a planície e parando para empoeirados viajantes se saciarem
com capilés de limão ou comprarem rústicos cestos de vime.
Sem comentários:
Enviar um comentário