quarta-feira, 15 de outubro de 2014

O Holandês Voador



Adelino reformara-se do ensino ía para dois anos, entretido com os livros e os passeios a pé, a conselho médico, diariamente fazia o calçadão da Praia Grande, terminando com uma bica no Angra.

Naquela manhã de Março o nevoeiro caía denso sobre a praia e a nortada cortante soprava a espuma das ondas. Alheio ao frio, Adelino saiu para o habitual passeio matinal, como de costume terminaria com a habitual bica no Angra. Em época baixa, pouca gente circulava, um velho passeava os cães e um ou outro surfista desafiava as ondas, forte,o cheiro do iodo abria o apetite para o almoço. O neto acompanhou-o nesse dia, a promessa de uma Playstation tirara o  pequeno Simão da cama, com a promessa de depois do passeio seguirem para o shopping.

No horizonte, encoberto por denso nevoeiro, Simão, até ali absorto com os headphones, descortinou um navio com velas, aparentava ser um barco antigo, como os dos filmes de piratas. Adelino, já fraco de vista e pondo os óculos, nada viu porém, podia ser a Sagres ou o Creoula, mas Simão achou que não, uma das velas parecia rota e o barco oscilava, como se estivesse à deriva, contador de histórias, Adelino lembrou-se duma que o neto não devia conhecer:

-Simão, alguma vez ouviste falar do “Holandês Voador”?

-“Holandês Voador”? Não, avô, nunca. É algum tipo de avião?

-Não, não…- qual velho lobo-do-mar, passou a narrar mais uma das infindáveis histórias, muitas Simão escutara já, tinha mesmo no quarto uma bandeira negra de piratas.

-O “Holandês Voador” foi um navio que há muitos anos navegou na zona do Cabo da Boa Esperança, tendo como destino Amesterdão. Durante uma tempestade, o capitão Van der Decken recusou-se a desviar o barco, apesar dos pedidos da tripulação, e monstruosas ondas fustigaram o navio enquanto ele cantava e fumava um cachimbo. Desesperados, muitos dos tripulantes amotinaram-se, mas o capitão, alcoolizado, matou o chefe e atirou o corpo ao mar. No céu, escutou-se uma voz, recriminando-o. Van Der Decken apontou ao céu, mas a pistola explodiu-lhe na mão, e a voz lançou-lhe uma praga: “ Por esse ato, ficas condenado a navegar para sempre com uma tripulação de mortos, e nunca mais terás descanso. Bílis será a tua bebida, e um ferro quente marcará a tua carne”.

Simão achou a história fascinante, um pouco como a dos Piratas das Caraíbas, ao fundo, enevoado, o barco continuava a oscilar e Simão jurou mesmo ter escutado tiros. O avô descansou-o, era uma lenda como muitas outras, mentes febris sempre tinham sido férteis em histórias mirabolantes. Minutos mais tarde, o barco desapareceu, e ao longe apenas se via mar e o horizonte. Já a caminho do Angra, Adelino concluiu o relato ao neto:

-Há muitos relatos de avistamentos do “Holandês Voador”, umas vezes por marinheiros experientes, outras por olhares toldados pelo álcool. A minha convicção é a de que o capitão vai errar para sempre sem destino, com as suas blasfémias e a mão queimada…

Na esplanada do Angra, o nevoeiro dissipou-se entretanto, e mais surfistas se juntaram no areal desafiando as ondas frias, no horizonte, apenas o azul de um dia que iria afinal ser solarengo. Avô e neto sentaram-se, olhando o mar, e passados minutos lá apareceu o Faísca a atender o pedido, algo irritado por sinal. Adelino que já o conhecia há muito, perguntou-lhe pelo motivo da má disposição:

-Então, Faísca, dormiste mal esta noite, ou houve passarinho na costa? -trinta anos de praia permitiam-lhe a familiaridade…

-Nem me diga nada, dr. Adelino. Tenho lá dentro um estrangeiro, um holandês que está ali desde que abrimos e só pede absintos. Já partiu dois copos, tal é ela! De vez em quando olha para a praia e começa a gritar na língua dele, estou a ver que ainda temos de chamar a guarda!

Ainda com a história do avô nos ouvidos, Simão espreitou para o balcão do Angra a observar o holandês. Era alto, de pele enrugada, com o cabelo louro em desalinho. Com a mão esquerda segurava o copo, já vazio, a da direita pareceu-lhe estranha, a um segundo olhar reparou  estar cicatrizada e ter apenas dois dedos. No horizonte, o sol era mais azul agora, com o esfumar do nevoeiro também o navio se dissipara, vistas bem as coisas, melhor seria irem ao shopping para comprar a Playstation.

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