Naquele
Verão Poirot decidiu-se por umas férias exóticas: longe da verde mas fria
Cornualha, tentaria Portugal, Catherine Nightingale, uma sua admiradora, vivia
no país, em Sintra, e convidara para duas semanas no continente. A viagem desde
Madrid foi no Lusitânia Express, nada
das comodidades do Expresso do Oriente, mas mais tranquilo à chegada, contudo.
Na
Estação do Rossio esperava-o o motorista de Mrs Nightingale, um português com
alguma idade e fardado a rigor, de nome Pacheco. Poirot reparou que tinha um
tom de pele escuro, sangue africano, por certo. Mirando a cidade, pareceu-lhe
agradável, um estranho troar de vozes sugeriu-lhe desacatos, mas eram apenas
varinas com cabaças à cabeça, apregoando peixe na Baixa. Colorido e étnico,
pensou, colocando as luvas brancas e ajeitando o monóculo, o bigode escuro e
retorcido não o distinguia muito dos locais, tal como ele maioritariamente de
cabelo escuro e estatura mediana.
Em
Sintra, Catherine preparara um quarto e um almoço farto, com geleia de maçã
para a sobremesa. A casa era uma soberba mannor
na estrada da Pena, a Poirot lembrou a placidez do Lake District, com o mar a duas milhas. Antes tinha sido
propriedade dum negreiro que fizera fortuna no Brasil vendendo escravos para os
engenhos de açúcar. No salão, pontificava um retrato do antigo proprietário, de
chicote e com uma sanzala em fundo, bem como as armas do major na parede.
Catherine enviuvara recentemente do major Nightingale, que estivera com Allenby
no Cairo nos anos vinte, apaixonada pela beleza de Sintra, que conheceu durante
uma viagem com o major a Portugal, por lá ficou, pintando e trabalhando como
correspondente do Daily Chronicle.
Por
esses dias sentia-se uma tensão nas chancelarias, mas Portugal seguia alheio,
sob a batuta de Oliveira Salazar. Em Sintra, agradado com o clima, familiar ao
das ilhas, Poirot dedicou-se ao seu hobby
mais recente: colecionar borboletas, as matas de Monserrate e da Pena eram
fartas em exemplares. Armado dum camaroeiro, a tal dedicou as manhãs, enquanto
à tarde ia até à praia no elétrico, tomar um refresco ou ler na esplanada do
Grego.
Um
dia, ao descer para o pequeno-almoço, encontrou Catherine particularmente
agitada: o quadro do negreiro, no salão grande, sumira. As janelas e portas
estavam fechadas e não havia sinais de arrombamento. Agastado por atrasar o
pequeno-almoço, Poirot mirou o salão, mas tudo o resto parecia no lugar, só o
quadro sumira. Após um exame detalhado, perguntou quem mais tinha acesso à
casa, além de Mrs Nightingale. Apenas uma empregada, a Alice, e esporadicamente
o Pacheco, mas o motorista morava na serra e só fazia serviços quando era
chamado. Alice nada vira, dormira cedo, pois de manhã teria de ir buscar queijo
e fruta para o pequeno-almoço dos senhores, Pacheco não voltara lá desde que
fora a Lisboa buscar os visitantes.
Tomado
o pequeno- almoço, o belga saiu até à vila, para um passeio, e apenas voltou
pelo almoço. À tarde, sem nada dizer, voltou a sair, a visitar o palácio da
vila, segundo disse. Mrs Nightingale estranhou-lhe o desinteresse pelo roubo, a
polícia foi porém avisada, e a GNR tomou conta da ocorrência.
Antes
do jantar, Poirot pediu à sua anfitriã que chamasse Alice e Pacheco e se reunissem
na sala, tinha uma importante revelação a fazer. Com todos sentados, Poirot, de
pé, impecável num fato escuro, rematado com polainas brancas, passou a
explicar:
-Messieurs, merci por terem
vindo. Como sabem, um valioso quadro de madame Catherine foi furtado desta casa
pela calada da noite. Neste momento, creio saber quem abusivamente terá levado
o quadro retratando o primitivo dono desta casa, monsieur Ornelas!
-Sabe? E quem foi, mr.Poirot?
-perguntou Catherine, arregalando os olhos.
-O dinheiro motiva muitas vezes o crime,
madame, e o quadro é da autoria de um pintor português famoso, Vieira
Portuense, tem valor económico. E o dinheiro é sempre um bom motivo para o
crime, não é mademoiselle Alice? -sublinhou, virando-se para a empregada,
de famílias modestas e há seis meses apenas ao serviço da inglesa.
-O que é que está a insinuar
sr.Poirot? Sou pobre mas honrada, os meus pais já serviram o sr. Carvalho
Monteiro e o conde de Sucena, nunca faria mal à senhora Nightingale, que tão
boa tem sido comigo! –replicou, quase chorando,
Catherine aguardava expectante o desfecho da história.
-Eu sei, mademoiselle Alice, eu
sei. Mas o criminoso não atuou por dinheiro, creio….
Virando-se para Pacheco, até ali sorumbático e em silêncio, Hercule sondou,
enigmático:-Tem ido muito à Camélia,
senhor Pacheco?
-Como diz? A Camélia? Porque
pergunta? -surpreso, o motorista ignorava que o belga
conhecesse a papelaria da vila, nessa tarde, a pretexto de comprar o Times, Poirot estivera lá à conversa:
-Parece que costuma lá ir muito. Aliás, a
entrada está um pouco desagradável, há muita areia no chão, por causa das
obras. Como aquela que trás nos seus sapatos, não acha?
Os
sapatos de Pacheco tinham vestígios de areia, amarelada e grossa. Antes que
dissesse algo mais, Poirot continuou:
-Igual àquela que está aqui junto
à lareira, estão a ver? -com um pedaço de papel branco,
Poirot recolheu areia do chão junto ao local onde antes estivera o quadro.
Todos olharam para o Pacheco, que, ruborizado, contrariou o belga impertinente:
-E isso que prova, senhor Poirot? Qualquer
pessoa podia ter passado pela Camélia e pisado a areia. Aliás, o senhor é o
primeiro a dizer que esteve lá esta tarde, quem garante que não foi o senhor?
-Duas questões, monsieur. Na
papelaria, o senhor Mourão, um antiquário local, falou-me que o senhor lhe
prometeu vender umas antiguidades que teria herdado duma tia. Mas o senhor
Cunha, da casa das queijadas, garantiu-me que o senhor não tem família. E mais:
que a sua avó terá sido uma escrava trazida para Sintra pelo senhor Ornelas.
Grávida. É verdade, n’est-ce pas?
A
argúcia de Poirot deixou o mulato estarrecido, olhando Alice e Catherine fez
silêncio uns segundos e finalmente decidiu abrir o jogo:
-Sim, é verdade, fui eu que tirei o quadro.
Mas não foi por dinheiro! Desde que minha mãe me contou que esse patife abusara
da minha avó, jurei que havia de vingar a sua memória. E para mim isso passava
por destruir a única imagem que dele restava ainda hoje, o quadro. Não
tencionava vendê-lo, mas destruí-lo apenas!
Sensibilizada,
Catherine aproximou-se de Pacheco, que ficou em silêncio, e colocando-lhe a mão
no ombro, tranquilizou-o:
-I understand
you, António, really, I do! E
como prova disso, faremos o seguinte: traga o quadro. Vamos queimá-lo todos no
jardim, e assim afastar desta casa o espírito do Ornelas!
Ufano,
Poirot sorriu e torceu o bigode fino:
-Trés bien, assim sendo, se não se importam,
comeria um pouco da esplêndida galinha que mademoiselle Alice tem no forno, que
já lhe senti o cheiro. E amanhã, bientôt, serra, que as borboletas aguardam!
Sem comentários:
Enviar um comentário