quarta-feira, 22 de outubro de 2014

O Velho Liurai





Timor Português, Maio de 1974.Pedro Rendeiro, alferes miliciano, mobilizado compulsivamente após um protesto em Económicas, seguia numa missão de patrulhamento em Baucau, com dois soldados do seu pelotão. O 25 de Abril apanhou-o em Díli, regozijando-se à distância com os desenvolvimentos em Lisboa, cujo eco lhe chegava pelas cartas do pai, velho antifascista entusiasmado com a revolução. O tempo chuvoso originara neblinas e o Unimog serpenteava pelos arrozais de Manatuto, lavrados por diligentes búfalos e velhos desdentados. Atravessando um rio por uma ponte de madeira, esta deu de si, e o Unimog afundou-se e foi levado pela corrente, junto com os ocupantes. Os corpos nunca apareceram, atolados no lodo, ou presa de algum crocodilo. Em Lisboa, o  professor Rendeiro, que semanas antes chorara de alegria com aquela manhã libertadora, chorava agora o filho precocemente desaparecido. Para ele, o mundo acabava ali. O quarto ficou sempre arrumado à espera de um desejado regresso, sem corpo para sepultar, os dias eram consumidos com idas ao Ministério do Exército, na ténue esperança de notícias. Os anos passaram, e a presença de Timor nos noticiários deixavam-no sempre a palpitar, tentando vislumbrar o filho no ecrã, quiçá escondido nas montanhas ou prisioneiro dos indonésios. Morreu de tristeza e na ilusão de o ver voltar.

Em  Dezembro de 2010, Cristina Rendeiro chegava a Timor-Leste, no âmbito da cooperação, para dar aulas de português. Filha de Jorge, o irmão mais novo de Pedro, a mística de Timor, depois do massacre de Santa Cruz, era para ela estimulante e desafiadora, e levava consigo a memória do tio de que o avô lhe falava, amargurado, um retrato de família, era tudo o que retinha dele.

Em Díli alojou-se numa residencial, a escola era próxima e com vista para o Tatamailau e as ruas pejadas de crianças e militares da ONU, muitos deles portugueses. Foi um deles que um dia conheceu num mercado, Gilberto Matias, de Marvão, há três meses em Timor, logo nascendo um clima cúmplice no seu primeiro encontro.

Gilberto preenchia os dias livres com saídas pela ilha, à descoberta. Um fim-de-semana foi com Cristina até Baucau, por uma estrada com casas desalinhadas e búfalos pachorrentos nas bermas. Num improvável restaurante tomaram um café, no exterior, crianças jogavam à bola. A moça que os atendeu era mestiça, aparentando mais de trinta anos, um dos miúdos era dela. Curiosa, meteu conversa:

-Portugueses?

-Sim, estamos em Díli, andamos a conhecer a ilha.

-Vieram ver o Grande Crocodilo…- interrompeu um velho liurai, sentado na soleira da porta, com um galo debaixo do braço.

-Como assim? -questionou Cristina.

-Não conhecem a lenda de Timor? - e com a sabedoria própria da idade desfiou a história, velha como ele:

-Há muito tempo, em Massacar, vivia um crocodilo velho. Sem velocidade para caçar no rio, não teve outro recurso senão caçar em terra, mas sem nada conseguir apanhar. Resolveu então regressar ao rio, mas o caminho era longo e o sol quente. Um rapaz que passava ajudou-o a arrastar-se até uma ribeira. O crocodilo ficou-lhe agradecido e  ofereceu-se para a partir daquele dia, o levar às costas. Certo dia, porém, cheio de fome, decidiu comer o rapaz, o que todos os animais censuraram, acusando-o de ingrato. O crocodilo dispôs-se então a partir e levar o rapaz às costas. Fazendo-se ao mar, nadou em busca das terras onde nasce o sol, porém, quando, cansado pensou em regressar a terra, começou a sentir o corpo pesado e a transformar-se em pedra, crescendo até atingir o tamanho de uma ilha. O rapaz caminhou sobre essa ilha e chamou-a de Timor.

Terminando, o velho saiu a enxotar um búfalo, a mestiça, que já escutara a história muitas vezes, puxou então conversa:

-Meu pai era português, como vocês. Mas morreu antes de eu nascer, nunca o cheguei a conhecer. A minha mãe costumava dizer-me que partiu em busca do crocodilo, e só voltaria quando o encontrasse, gordo e feliz.

Cristina comoveu-se com a história e partiu com Gilberto, com a imagem do velho liurai e no pensamento, dócil, o filho mais novo da mestiça agarrou-se à perna de Cristina.

A cem metros, entre os porcos que deambulavam e o ferro-velho  que  circundava o casebre transformado em café, a porta de um jipe cor de azeitona enferrujado ainda permitia ler, sumidas, as palavras “Exército Português”.

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